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Quem goza, buzina; quem ama, perdoa. Enquanto isso, o preconceito (religioso) mata!

Quem goza, buzina; quem ama, perdoa. Enquanto isso, o preconceito (religioso) mata!

Na edição n° 758 da revista francesa Cahiers du Cinéma, há uma reportagem especial sobre o cinema brasileiro contemporâneo. Num artigo escrito por Ariel Schweitzer, o impacto do que ele definiu como “era Bolsonaro” é amplamente sentido e refletido nos filmes. Afirma ele: “a aliança entre a tecnologia e as idéias mais conservadoras evocam naturalmente a situação atual do país e a recente eleição presidencial, onde o WhatsApp e companhia favoreceram largamente a vitória da extrema-direita”.

Publicado em setembro de 2019, este artigo menciona diversos filmes relevantes do cinema brasileiro e, num subtópico intitulado “o cinema regional”, ele cita diretamente “Azougue Nazaré” (2018, de Tiago Melo), chamando a atenção para o fato de que a expansão das igrejas evangélicas está precisamente no coração do filme. Continua ele: “através de uma ‘mise-en-scène’ energética, de uma montagem fragmentada e de uma banda sonora eletrizante, o filme confronta o folclore nordestino do Maracatu, herança da história dos escravos, a uma série de assassinatos ritualísticos, onde seus membros são suspeitos de pertencerem a seitas satânicas”.

Enquanto forma de exortação sobrevivencial ao confinamento advindo da crescente mortalidade por COVID-19 no Brasil, cujo presidente alega estar infectado mas ignora protocolos básicos de segurança, este filme foi gratuitamente disponibilizado para audiência via ‘streaming’. Poucos anos após a sua realização, ele funciona não apenas enquanto contundente prognóstico social mas enquanto registro mui verossímil da perniciosidade moral atrelada à extrema-direita política, em que a hipocrisia é a principal chave ativa.

Não há precisamente um enredo no filme, mas a apresentação de diversos personagens e de uma situação geral vilanaz, esta comum ao Brasil como um todo. Filmado na cidade de Nazaré da Mata, no interior pernambucano, “Azougue Nazaré” conta com a presença de vários moradores locais como intérpretes. O mais parecido com um protagonista talvez seja Catita (Valmir do Côco), um participante empolgado das tradições do Maracatu, que veste-se de mulher e é obrigado a esconder-se de sua esposa Darlene (Joana Gatis, também figurinista), convertida a uma igreja evangélica e temente de que as tradições folclóricas de sua cidade sejam demoníacas.

Frustrada com o comprometimento escuso de seu marido, Darlene passa a ter sonhos recorrentes onde crê que deve engravidar do pastor de sua igreja (mestre Barachinha), que antes era um participante entusiasmado do Maracatu e, após converter-se, passou a demonizar esta manifestação cultural. A fim de justificar a sedução de sua fiel iludida, o pastor deturpa versículos bíblicos, usados à sua revelia oportunista, retirando, por exemplo, o acento agudo que converte um adjetivo em verbo no primeiro versículo do capítulo 3 do livro bíblico de Oséias: “e o Senhor me disse: vai outra vez, ama uma mulher, amada de seu amigo, e adúltera, como o Senhor ama os filhos de Israel”. Além do acento, será subtraída da leitura mal-intencionada o desfecho deste versículo, que clama pela tolerância boicotada nas falas do alegado religioso: “embora eles olhem para outros deuses, e amem os bolos de uvas”…

Por motivos evidentes, esta intolerância pertinaz, adicionada ao aspecto sevicioso supramencionado, engendrará uma explosão de fúria a ser convertida em música, dança e resistência, o que ecoa em todas as demais tramas que são simultaneamente contadas no filme: há a troca de repentes via WhatsApp, protagonizada pelo jovem Neymar (Mestre Anderson Miguel, também responsável pela trilha musical do filme); há o caso de amor entre Tita (Mohana Uchôa), a esposa insatisfeita de um chaveiro, e Ítalo (Edilson Silva), o filho macambúzio do pastor; e há uma situação sobrenatural envolvendo o pai de santo Nani (Ananias de Caldas), perseguido de maneira inclemente por fanáticos evangélicos, que destroem a sua casa, “em nome de Jesus”, e o acusam de ser responsável pelo desaparecimento de cinco mestres maracatuzeiros na cidade. Nos postes e nos canaviais, raios.

Se, na Bíblia Sagrada, Jesus Cristo repreende o apóstolo Pedro quando ele corta a orelha de um dos guardas que entram no jardim de Getsêmani para prendê-lo, alegando que “todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão” (Mateus, 26: 52), no filme e entre os eleitores empedernidos de Jair Bolsonaro, o cristianismo parece indissociado de um ódio contínuo por seus semelhantes, hipertrofiados naquilo que possuem de mais diferente e, portanto, imperdoável. A própria fonte bibliográfica destes atos falseados de fé é ignorada em seus apelos por amor e entendimento, conforme já foi percebido na demonstração fílmica da supressão maligna de versículos que indicavam o perdão. O anti-messianismo fatal, atualmente em voga no Brasil, que o diga: enquanto os bolsonaristas recusam-se até mesmo a usar máscaras quando infringem as prescrições quarentenárias, o país chega perto de atingir os oitenta mil mortos em meados de julho de 2020. Um ambiente propício à vinda do Anticristo que esse tipo hipócrita de evangélico tanto apregoa…

Não há generalização no filme, mas, pelo contrário, uma exposição quase randômica de eventos corriqueiros, de modo que muitas das subtramas permanecem em aberto. A fim de que não se tenha a errônea impressão de que sua criticidade incorra em preconceitos similares aos dos personagens intolerantes, convém cotejar “Azougue Nazaré” a um filme recente do também pernambucano Gabriel Mascaro, comentado anteriormente e também destacado no artigo elogioso da revista francesa.

De nossa parte, preferimos o amor, mesmo que aparentemente adúltero, como é aquele praticado por Ítalo e Tita, no interior de um automóvel, antes da audição de uma canção religiosa em inglês. Durante o orgasmo, ela, sem querer, aperta mais de uma vez a buzina do veículo. Tenta dialogar em seguida com seu marido, mas este refugia-se nas alegações silenciosas de um trabalho sem descanso. Quando isso ocorre, convém repensarmos nossos atos: estaremos realmente fazendo bem ao próximo? O próprio Jesus Cristo responde: “Amai, pois, a vossos inimigos, e fazei bem, e emprestai, sem nada esperardes, e será grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo; porque Ele é benigno até para os ingratos e maus. Sede, pois, misericordiosos, como também vosso pai é misericordioso” (Lucas, 6: 35-36). Amém!

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