Em 2020, assistir a telejornais tornou-se uma atividade muito mais masoquista que o habitual: além dos números cada vez mais alarmantes de mortos por causa da COVID-19, os posicionamentos irresponsáveis e estouvados do presidente brasileiro Jair Bolsonaro deprimem sobremaneira os telespectadores. Mas, no dia 25 de julho do ano em pauta, uma manchete alvissareira trouxe-nos um pouco de alívio: o cacique Raoni, aos 89 anos de idade, recebeu alta no hospital em que esteve internado, na cidade de Sinop, no norte do Estado de Mato Grosso…
Conhecido por seus posicionamentos públicos na defesa dos direitos indígenas, o cacique Raoni Metuktire, ainda hoje, é uma das vozes mais contundentes na luta pela preservação da Amazônia. Após o falecimento de sua esposa, justamente por causa da COVID-19, ele passou vários dias sem conseguir alimentar-se e esteve internado em alto grau infeccioso, mas, após recuperar e declarar-se curado, retornou à sua comunidade Xingu, onde foi recebido de maneira festiva.
Infelizmente, o cacique Aritana Yawalapti, líder do Alto Xingu, não recebeu o mesmo laudo: até o momento em que esse texto era escrito, ele permanecia internado, em estado gravíssimo, num hospital na capital do Estado de Goiás. Doença que o aflige: a mesma que assassina diariamente tantas pessoas, cujas mortes já ultrapassaram o número de oitenta e sete mil pessoas, somente no Brasil, antes do final do mês supracitado.
Nesta conjuntura noticiosa, que afeta de maneira determinante as comunidades indígenas do País, a disponibilização do filme “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” (2018, de João Salaviza & Renée Nader Messora) surge como recomendação mais que benfazeja. Premiado na mostra ‘Un Certain Regard’ do Festival Internacional de Cinema de Cannes, este longa-metragem rodado em Tocantins destaca-se pela sensibilidade sobressalente de seu roteiro.
O protagonista do filme, Ihjãc, tem apenas quinze anos de idade e vive com sua esposa e seu filho pequeno numa roça afastada da oca onde mora sua mãe. Seu pai faleceu há algum tempo, mas ainda não foi realizado o ritual requerido para que seu luto fosse concluído. Como tal, Ihjãc sonha com o espírito de seu pai todas as madrugadas. Acorda assustado e vai até uma cachoeira, onde não consegue vê-lo, mas ouve claramente a sua voz. No diálogo entre pai e filho, ficamos sabendo que Ihjãc destina-se a ser o próximo pajé da aldeia, mas ele rejeita esta enorme responsabilidade. Seu filho pequeno não pára de chorar, e sua esposa teme que ele esteja perseguido por ‘mecarôs’, avantesmas florestais. Pouco a pouco, Ihjãc explica-lhe a situação…
Após deixar claro que não está tendo um caso extraconjugal – possibilidade que a jovem Kôtô aventa ao lado de suas amigas, durante um banho de rio –, Ihjãc decide refugiar-se na cidade, onde é declarado hipocondríaco no hospital local, visto que seu mal-estar não é compreendido pelos médicos. Na aldeia Pedra Branca, onde vive, Ihjãc relata as eventuais visitas de candidatos políticos que oferecem dez Reais para que os indígenas votem nele e, ao ouvirem respostas negativas, baleiam as placas limítrofes da reserva, em tom intimidatório. Na cidade, constata o desprezo advindo da incompreensão de seus costumes.
Cerceado por um ambiente de chantagens partidárias e predominância evangélica, Ihjãc, ainda assim, crê que está protegido das invocações deterministas da Arara, que exigem o seu retorno à aldeia e a aceitação do cargo místico que é-lhe reservado. Ele constatará que não se pode fugir daquilo que é inevitável. E o percurso de imersão ritualista de Ihjãc é o que mais fascina no filme, sem dúvida, um dos mais interessantes do panorama cinematográfico brasileiro hodierno.
Magistralmente fotografado e dirigido de maneira sublime – como se os diretores controlassem a própria natureza! – “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” beneficia-se das interpretações orgânicas dos próprios membros da etnia Krahô. Na cidade, Ihjãc é obrigado a chamar-se Henrique, e é hostilizado por ainda não possuir Carteira de identidade. Como muitos semelhantes a ele, enfrenta o duplo estigma sofridos pelos habitantes originários das Américas: são perseguidos quando cumprem os ritos tribais que lhes são caros, e são maltratados quando cedem eventualmente à aculturação impositiva, retratada de maneira atordoante no filme, em diversos momentos, como quando Ihjãc cantarola a canção sertaneja executada num rádio extremamente iluminado ou quando ele é flagrado distraindo-se num fliperama, após suplicar um lugar para pernoitar.
Construído tramaticamente a partir de relatos verídicos, “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos” possui um ritmo lento e contemplativo. Põe-se ao lado de Ihjãc em sua angústia existencial muito específica, e concede-lhe um desfecho aprazível, na mesma cachoeira onde o filme inicia-se. Falado predominantemente em idioma ‘krahô’, obriga-nos a confrontar um contexto brasileiro lamentavelmente ignorado nas estatísticas nacionais, bem como em sua noticiabilidade correspondente. O próprio Ihjãc foi visto, recentemente, pedindo ajuda, através das mídias sociais, a fim de conter o avanço da epidemia do CoronaVírus em sua aldeia. O tempo de nossa resistência é agora!



