Na edição 2020 do festival curitibano Olhar de Cinema – que precisou ser virtual, em razão da pandemia do CoronaVírus – a seção cognominada Foco prestou homenagem ao jovem cineasta goiano Daniel Nolasco. Graduado inicialmente em História, ele passou a dedicar-se ao cinema após uma desilusão acadêmica durante o Mestrado. Seu primeiro longa-metragem, o documentário “Paulistas” (2017), causou muito estranhamento pelo modo plácido com que regista o esvaziamento juvenil numa região rural demarcada pela hipertrofia do agronegócio. Mas ele radicalizaria as suas propostas roteirísticas nos filmes seguintes…
Após ter abordado as vertentes homossexuais nalguns curtas-metragens, ele ousou ao documentar um concurso fetichista em “Mr. Leather” (2019), que possui muitas semelhanças com seu terceiro longa-metragem, “Vento Seco” (2020). Este, exibido anteriormente no Festival Internacional de Cinema de Berlim, amalgama as temáticas de ambas as obras: volta ao seu Estado natal, Goiás, e encara o homossexualismo de frente, sem ignorar o fascínio pelas parafilias. É um recurso de sobrevivência identitária, na verdade.
Em entrevistas, o diretor brasileiro afirma ter sido influenciado pelos filmes do cineasta norte-americano Wakefield Poole. Malgrado ser abundante em cenas de sexo explícito, a filmografia pooleana problematiza amplamente as questões classistas, sobretudo no terceiro episódio do famoso “Boys in the Sand” (1971), em que um funcionário negro da companhia elétrica é seduzido por um homem branco aburguesado. Ou seja: a erotogenia pederástica difundida na publicidade de seus filmes tem muito mais a ver com a falta de espaço para as abordagens do cotidiano homossexual – que, como o de qualquer pessoa, é demarcado pelo sexo – que pela licenciosidade hipocritamente diagnosticada por seus detratores.
É exatamente isso o que Daniel Nolasco faz em relação à naturalização da (homo)sexualidade em seu mais recente longa-metragem: repleto de cenas de sodomia, felação, cuspidas no rosto e insinuações masturbatórias, o filme tem sido surpreendentemente atacado por moralistas (inclusive, vinculados à esquerda partidária), que tacham de “inatural” a compulsão erótica do protagonista, quando há inaturalidades muito mais gritantes (e vilanazes) no enredo, sob o jugo do capitalismo. Avaliemos, portanto, a sinopse e os personagens de “Vento Seco”…
O protagonista Sandro (Leandro Faria Lelo) trabalha numa fábrica de fertilizantes sólidos, onde trava contatos sexuais freqüentes com o colega Ricardo (Allan Jacinto Santana), com quem não tem coragem de conversar em público. Deveras solitário, Sandro tem sonhos recorrentes envolvendo um ritual de dominação sadomasoquista, em que um dos parceiros veste-se de cachorro. Numa interpretação rasteira, isso seria uma premonição… Mas de quê?
Apesar de fazer sexo quase diariamente, Sandro sente-se insatisfeito – e visivelmente infeliz. Observa comumente as silhuetas genitais de seus colegas de trabalho e transeuntes, numa emulação almodovariana, até que apaixona-se devastadoramente por um recém-chegado à cidade, Maicon (Rafael Teóphilo). Daí por diante, tecerá uma obsessão platônica, que desembocará em atos extremos de ciúme.
Em paralelo a esse retrato da sexualidade carente do personagem principal, o filme aborda de maneira sutil a problemática da exploração proletária no ambiente empregatício onde os personagens convivem: a melhor amiga de Sandro é a abnegada Paula (Renata Carvalho), técnica de segurança do trabalho que esforça-se para encorajar Sandro a participar mais ativamente das reivindicações sindicais. Em dado momento, ela faz aniversário. Como “se só completa quarenta anos de idade uma vez na vida”, ela organiza uma grande festa numa chácara e convida todos os personagens mencionados. É onde serão estabelecidas as relações que culminarão no desfecho compensatório, em mais de um sentido.
Além desses personagens, há algumas relações familiares dignas de menção: não sabemos quase nada sobre o passado de Sandro, exceto que ele trabalhou num supermercado e que ficou traumatizado com o assassinato de um amigo uranista, de modo que sequer foi ao seu funeral, com medo de represálias; sobre Paula, há também poucas informações prévias – e não há nenhum indicativo intrafílmico de que ela seja transexual, como a sua intérprete (o que é um mérito assaz aplaudível na concepção do inteligente roteiro); Maicon veio de uma cidade do interior goiano e possui ao menos dois outros irmãos, que moram consigo. Um deles, é o homofóbico David (Del Neto), que não aceita o seu estilo liberal de vida (Maicon veste-se como um personagem fassbinderiano ou muso de Kenneth Anger); a outra é a jovem Larissa (Larissa Sisterolli), que passa a maior parte de seus dias sendo explorada como caixa de supermercado. Um ato de violência será perpetrado, numa situação que envolve frontalmente duas outras pessoas: o amante Ricardo, que vive com uma irmã de nome Margot (Isabella Cecília do Nascimento); e o migrante Cézar (Léo Moreira Sá), que fôra baleado na juventude, durante o período de namoro com a sua atual esposa. Um filme definitivamente adulto – e não apenas por sua classificação etária!
Produzido numa época de necessidade demarcada de posicionamentos políticos, o filme direciona-se frontalmente contra a desumanização bolsonarista, sem precisar recorrer à obviedade: cada filigrana de “Vento Seco” é protestante, desde o sexo oral praticado enquanto os apresentadores de uma feira agropecuária lista os patrocinadores do evento – entre eles, o Governo Federal, “Pátria Amada Brasil” (sic) – até a lisura moral de Paula, que beira um esquematismo verossímil e é detectada inclusive num momento de diversão, quando ela exige que todas as pessoas que sobem num barco usem coletes salva-vidas. As contradições discursivas, oriundas do sufocamento sobrevivencial, manifestam-se em diversas seqüências, como quando Sandro comenta sobre os problemas do alagamento provocado por uma represa – e é tachado chistosamente de “ambientalista que trabalha para o agronegócio” – ou quando, após lamentar-se pela morte de um funcionário (e amigo), Paula é vista imaginando qual seria a cor de seu novo automóvel. “Tu tens dinheiro para isso?”, pergunta Sandro. “Não custa imaginar”, diz Paula.
Este apelo à imaginação percorre toda a narrativa de “Vento Seco”, em espacial nas ótimas cenas de sexo. Não tão explícitas quando os moralistas fazem parecer, elas chegam a ser tímidas. A intenção das mesmas não é propriamente excitar o espectador, mas demarcar a solidão citadina de Sandro. E o cuidado do diretor Daniel Nolasco é incrível: vide o bar que ostenta o nome do falecido ator pornográfico Al Parker [1952-1992], em luz ‘neon’, numa parede. Um detalhe de gênio!
Por fim, mas sem esgotar a miríade de provocações e debates impulsionada por este filme, cabe destacar a importância conceitual concedida às músicas: desde o hino ‘gay’ “Me Destrói”, de Thiago Pethit, que aparece numa cena-chave e justifica o título interrogativo desse texto, à regravação de “I’m on Fire”, de Bruce Springsteen, numa versão ‘pop’ pela banda Chromatics, que é executada numa seqüência de extremo platonismo, num parque de diversões. A voz deslumbrante de Maria Bethânia, entoando “Negue”, surge na resolução benfazeja de sexo a três, validando o investimento de quase dez por cento do orçamento deste filme em direitos autoriais. Do modo mui significativo como as canções aparecem no filme, elas dão continuidade às pulsões dos personagens, e permanecem ativas após a sessão, visto que seu assunto principal é o nosso cotidiano, via exortação anti-repressiva à naturalidade de nossos desejos sexuais. Sejam eles quais forem!