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“Que mania de achar que a gente não pode ter as coisas!”, ou o Cinema enquanto evocação feliz do dia a dia…

“Que mania de achar que a gente não pode ter as coisas!”, ou o Cinema enquanto evocação feliz do dia a dia…

Além de possuir em seu catálogo os vencedores e participantes dos principais festivais cinematógrafos ao redor do mundo, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo também dedica parte considerável de sua programação aos lançamentos de filmes brasileiros. Na quadragésima quinta edição do evento, ocorrida entre os dias 21 de outubro e 03 de novembro de 2021, tivemos acesso a obras bastante sensíveis como: o documentário “O Circo Voltou” (2021, de Paulo Caldas); a animação “Tarsilinha” (2021, de Célia Catunda & Kiko Mistrorigo); a adaptação de uma extraordinária peça teatral protagonizada por Andréa Beltrão, “Antígona 442 a.C.” (2021, de Maurício Farias); o drama sul-mato-grossense sobre transfobia “Madalena” (2021, de Madiano Marcheti); e o aguardado “Deserto Particular” (2021, de Aly Muritiba), entre diversos outros.

Após ter estreado no Festival Internacional de Cinema de Roterdã, o longa-metragem “A Felicidade das Coisas” (2021, de Thaís Fujinaga) também fez parte dos lançamentos brasileiros exibidos na Mostra. Primeiro trabalho de sua realizadora, este filme foi um dos mais elogiados por público e crítica durante o evento, o que é bastante compreensível: muitíssimo bem conduzido em suas evocações da vida cotidiana, ele serve como um pertinente reflexo socioeconômico das mudanças políticas enfrentadas pelo Brasil nos últimos anos…

Pelo que pode ser deduzido a partir da direção de arte, o enredo transcorre num período de férias do ano 2015, quando a presidenta brasileira ainda era Dilma Rousseff. Demoramos um pouco para entender as condições financeiras da protagonista Paula (Patrícia Saravy), que está decidida a instalar uma piscina no quintal da propriedade de veraneio em que está instalada com a sua mãe (Magali Biff) e os dois filhos, Gustavo (Messias Barros Góis) e Gabriela (Lavínia Castelari). A residência, localizada na região litorânea de Caraguatatuba, no Estado de São Paulo, é atravessada por um rio, de modo que os pescadores locais adentram a área particular de Paula com relativa freqüência. Ela não permite que seus filhos nadem nesse rio, muito menos que eventualmente comam os peixes lá pescados. E, por extensão, ela não acha positivo que seu filho mais velho interaja com os parentes dos pescadores.

Começando a experimentar os anseios revoltosos da puberdade, o introspectivo Gustavo aceita as propostas aventureiras de seus novos amigos, o que deixará a sua mãe ainda mais preocupada, sendo que vários elementos justificam a sua aflição: estando na gravidez avançada de seu terceiro filho, Paula não consegue mais conversar com o seu marido ausente, com quem tem brigas cada vez mais acirradas por causa de dívidas financeiras. Além de evidenciar que o divórcio é iminente, esta família passa a ser afetada pelas dificuldades econômicas que assolarão com maior efetividade a população brasileira a partir deste período: sem serem ricos, eles perceber-se-ão cada vez mais limitados na aquisição de seus desejos materiais. A instalação da piscina talvez não fique pronta e não terão dinheiro suficiente sequer para nadarem num clube local!

Numa das cenas mais bonitas do filme, Paula, Gustavo e Gabriela brincam felizes na água, ao som de uma trilha musical bastante graciosa, que parece suspender por um instante as inúmeras preocupações dessa ainda jovem e atribulada mãe. E o modo como os atores representam impressiona pela naturalidade: as duas crianças são tão eloqüentes que, quando verificamos os créditos finais, ficamos chocados ao saber que eles não utilizam seus verdadeiros nomes e que não são relacionados parentalmente à protagonista. O realismo do filme é sobremaneira aplaudível, lembrando bastante, como muitos críticos fizeram questão de frisar, o estilo do recente – e também ótimo – “Benzinho” (2018, de Gustavo Pizzi).

Numa madrugada insone, em que não consegue dormir por causa das dívidas, Paula resolve pedir dinheiro emprestado à sua mãe, que não concede. É quando ela pronuncia a frase peculiar que intitula este artigo, antes que um fundo negro inusitado apresente-nos ao que parece ser um sonho, em que, num barco, sozinha, Paula assiste deslumbrada à passagem de uma baleia. Nalguma medida, este preâmbulo onírico anuncia a mudança de tom que a trama adere, na qual Gustavo torna-se um protagonista momentâneo, numa digressão narrativa que o mostra fugindo dos vigilantes que o perseguem quando ele invade, junto aos ousados filhos dos pescadores, uma festa privada no clube que fica próximo à residência de Paula. Isso fará com que ela perceba que, para além das frustrações decorrentes de seus desejos de consumo, precisará lidar com questões pessoais referentes ao cuidado com os filhos: mesmo grávida, ela não hesita em fumar, por exemplo. E dedica boa parte de seu tempo a comparar o modo como ela cria seus filhos à maneira com que sua própria mãe a criou, sobretudo no que diz respeito às surras que recebia. A genitora é taxativa: “tem que deixar os filhos se desgarrarem mesmo”. A derradeira seqüência do filme é muito sintomática no que tange à aceitação (ou não) desse conselho.

Mui beneficiado por uma concepção técnica que extrai o máximo de expressividade da fotografia espontânea e do certeiro uso do desenho de som, “A Felicidade das Coisas” possui momentos de suma emoção, justificados por experiências pessoais da diretora. Num letreiro final, ela agradece às histórias contadas por Glória Fujinaga – possivelmente sua mãe ou avó – e não é por acaso que este prenome é sugerido quando Paula está pensando em escolher como batizará a filha vindoura: no cotejo com os demais nomes, Paula reclama que este não combina, ao que sua mãe retruca, sorridentemente, “filho é para ser tudo descombinado mesmo”. O filme é, portanto, sobre isso: a valorização daquilo que faz-nos tão bem e é barato (ou até gratuito), mas que não depende apenas de nós. Afinal, vivemos em sociedade e, no caso específico do Brasil, esta passou a ser malograda a partir do golpe efetivado pela extrema-direita, em 2016. Durante a sessão, sentimos saudade de quando percebíamo-nos felizes – e sabíamos. A dica certeira do roteiro (escrito pela própria diretora): este momento pode ser agora!

Wesley Pereira de Castro.

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