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Quantas mãos são necessárias para preservar uma vida em confinamento?

Quantas mãos são necessárias para preservar uma vida em confinamento?

Tornou-se corriqueiro ouvir – tanto em telejornais quanto em diálogos senso-comunais – a expressão “lutar contra um inimigo invisível”. Durante este período de quarentena profilática contra a disseminação da doença transmitida pela COVID-19, ou CoronaVírus, trava-se uma batalha inclemente contra um organismo microscópico, que se dissemina mui rapidamente. Além das centenas de milhares de mortes que já ocorreram ao redor do mundo, e dos milhões de infectados, há outro grupo de pessoas afetadas por esta pandemia: aquele composto por quem adoeceu psicologicamente em razão do confinamento forçado.

A privação severa de contato humano presencial ou o convívio forçado com agressores acentua as mazelas da depressão, cujos efeitos tornam-se devastadores durante o período em que é fortemente recomendado não sair às ruas. E é nesse contexto que o elogiado filme espanhol “A Trincheira Infinita” (2019) é aqui sugerido.

Dirigido inusualmente por três realizadores (Jon Garaño, Aitor Arregui e Jose Mari Goenaga), este filme foi uma das produções ibéricas mais premiadas no ano de seu lançamento: recebeu, entre outros, os Prêmios Goya (considerado “o Oscar espanhol”) de Melhor Atriz e Melhor Som, além de ter sido indicado a várias categorias. Seu enredo tem muitíssimo a ver com a situação que enfrentamos durante a época de quarentena, de modo que vêm à tona algumas comparações oportunas…

Na primeira sequência, passada em 1933 – nos preâmbulos da Guerra Civil Espanhola, que durou até 1939 – acompanhamos a fuga de Higinio Blanco, um alfaiate que passa a ser perseguido por opor-se às tropas de Francisco Franco [1892-1975] e precisa esconder-se por mais de trinta anos para não ser preso e/ou assassinado. Interpretado pelo excelente Antonio de la Torre, este personagem enfrentará inúmeras agruras emocionais, confinado num vão entre as paredes da casa onde habita sua esposa Rosa (Belén Cuesta).

Dividido em vários capítulos, demarcados por verbetes dicionarísticos, “A Trincheira Infinita” baseia-se nos relatos reais dos “toupeiras”, fugitivos políticos que esconderam-se em seus ambientes domésticos até 1969, quando ocorreu a anistia dos crimes cometidos antes e durante a mencionada guerra civil. Entretanto, o roteiro do co-diretor Jose Mari Goenaga e de Luiso Berdejo enfatiza um aprisionamento mui particular, que torna Higinio um sujeito bastante combalido e traumatizado. Apesar da liberdade temporã, não é tão fácil evadir-se de algo que o aprisionou por tanto tempo. Mais ou menos como pode ocorrer com algumas pessoas ao fim da quarentena relacionada à COVID-19…

Dentre os treze verbetes que pontuam a narrativa do filme, existem alguns procedimentos típicos da conjuntura de guerra (“batida”, “prisão”, “aliado” e “anistia”) e verbos-chave na biografia atormentada dos “toupeiras” (“esconder”, “confinar”, “mudar”, “desenterrar” e “sair”), porém o que mais chama a atenção é o adjetivo “franco”, que também funciona como substantivo próprio que designa o general que perpetuou um golpe de Estado em 1936 e permaneceu no poder, como ditador, até a sua morte, em 1975. Foi o temível período do franquismo, que, por mais permeado por assassinatos e perseguições que tenha sido, só durou tanto tempo por causa da fidelidade pérfida de seus apoiadores.

Na diegese fílmica, o principal vilão é um dos vizinhos de Higinio e Rosa, Gonzalo (Vicente Vergara), que o denuncia e o procura por décadas, mas há um inimigo bem mais sutil e difícil de combater, que é a influência midiático-afetiva. Em mais de uma cena, Rosa comenta que o “generalíssimo” – como Francisco Franco era chamado – não parecia tão violento quando mostrado nos cinejornais que antecediam as sessões de cinema, o que acentua a ambigüidade do adjetivo que intitula um dos capítulos. Obviamente, a definição correspondente a esta palavra [“que é leal, sincero; não dissimulado; verdadeiro. Livre de qualquer estorvo; desembaraçado”] não se aplica aos comportamentos e posturas pessoais do General Franco, mas havia parte da opinião pública que deixava-se seduzir pelas mentiras que ele disseminava através dos veículos propagandísticos estatais…

Noutra situação do filme, Higinio encontra um carteiro homossexual que, apesar de constitucionalmente acuado quanto aos seus interesses amorosos, ao ser questionado sobre suas posições políticas, declara “não ter nada a ver com isso”. Isso desencadeia a frustração acerbada de seu interlocutor: “é assim que eles conseguem perpetuar-se no poder: fazendo com que o povo deixe de pensar”. Como não pensar imediatamente na situação brasileira, onde a chaga bolsonarista continua a manter um contingente sádico de apoiadores, que insiste em tachar de “mito” um presidente preconceituoso, arrogante e publicamente defensor da tortura, da censura e das ditaduras militares? Neste sentido, assistir a este filme é multiplamente proveitoso, pois possibilita-nos que, a partir da reflexão sobre crimes presidenciais do passado, possamos intervir nas atrocidades cometidas no presente.

Não obstante sua longa duração – duas horas e vinte e sete minutos – “A Trincheira Infinita”, distribuído no Brasil pela plataforma Netflix, possui um ritmo eficiente, uma reconstituição de época primorosa e conta com a boa participação de Emilio Palacios como Jaime, o filho adolescente do casal protagonista. As condições de engravidamento de Rosa, as alterações de personalidade de Higinio – cada vez mais obsessivo e ciumento, com o passar do tempo – e as translações situacionais que permitem o cotejo entre aquilo que é enfrentado pelos sobreviventes da Guerra Civil Espanhola e pelos subjugados pela malevolência bolsonarista tornam este filme um contributo sobressalente às esperanças de que “tudo vai ficar bem” após a deflagração mortífera desta pandemia…

 

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