Muito tempo antes de “Nós” (2019) chegar aos cinemas, o filme já era merecedor de intensa publicidade: seu diretor, produtor e roteirista Jordan Peele havia sido merecidamente laureado com o Oscar de Melhor Roteiro pelo filme “Corra!” (2017) e prometia realizar mais um devastador exercício de terror, de modo que o rosto apavorado de Lupita Nyong’o no cartaz deixava às claras a intenção de novamente problematizar o racismo via convenções do gênero hollywoodiano. Incrivelmente aceito num terreno espetaculoso que neutraliza, em essência vendável, a sua pujança identitária, Jordan Peele conseguiu surpreender-nos novamente com um brilhante estudo sobre os pavores advindos da exclusão social. “Nós” é absolutamente genial, mesmo quando exacerba ostensivamente os seus defeitos e a intencional falta de sentido tramático.
Iniciemos esta análise mui elogiosa com uma observação de sua diegese, portanto: logo na abertura, a protagonista – ainda criança, em 1986 – é mostrada assistindo TV em sua residência. Num intervalo comercial, ela depara-se com uma campanha filantrópica que propõe o alinhamento de “mãos através da América”, uma corrente de união entre indivíduos, através da representação de bonequinhos vermelhos de mãos dadas. Momentos depois, esta garotinha é vista ao lado de seu pai ébrio, que realiza tiro ao alvo num parque de diversões. Como prêmio, ela escolhe a camisa preta de um célebre videoclipe de Michael Jackson. Sua mãe teme que ela tenha pesadelos naquela noite. Começa a relampejar. Ela afasta-se de seus pais e adentra uma fantasmagórica sala de espelhos. Experimenta uma sensação de terror extremo, devidamente esclarecida apenas ao final. Brrrrrr!
Intensamente atormentada por conta deste susto, a garotinha é diagnosticada com estresse pós-traumático. Emudece, queda assustada por muito tempo. Redescobrirá a autoconfiança através do balé. Durante os créditos iniciais, vemos uma pletora de coelhos brancos, presos em gaiolas, enquanto a câmera focaliza centralmente um leporídeo de pelagem marrom. Nas gaiolas, eventualmente também percebemos alguns coelhos pretos. A trilha musical lúgubre e maravilhosa de Michael Abels executa um hino tétrico. Constatamos, desde a sua abertura, que estamos diante de um clássico imediato do gênero. E, como não poderia deixar de ser, as pistas hermenêuticas abundam. Ao desfecho, o arremate genial: eram todas falsas! O que importa para o diretor está fora do filme: é a realidade de barbárie perpetrada pela adesão capitalista do espectador. Uau!
Servindo-se habilmente de sua larga experiência como comediante, o diretor entulha o seu filme de alívios cômicos questionáveis e de momentos de humor inconvenientes, em momentos de morticínio. Exemplo: numa hábil manobra condutiva, o público é levado a torcer para que a “heróica” família assassine os seus clones sombrios de maneira progressivamente violenta, a ponto de quem possuir mais mortes em seu currículo sobrevivencial gozar de favorecimentos nas decisões familiares de risco. Isso não seria tão (ou mais) monstruoso que os atos malévolos perpetrados pelos vilões? É apenas o ponto de partida para várias irregularidades e/ou inverossimilhanças que pululam no roteiro: como as “sombras” conseguiram desvencilhar-se de seu comportamento intensamente imitativo a fim de rebelarem-se contra seus originais ativos, assassinando-os? Por que apenas a família da protagonista é poupada de uma tesourada súbita no pescoço e recebe antes uma minuciosa explicação de princípios obscurecidos? O que os helicópteros vistos no desfecho prenunciam? As perguntas estão no filme; as repostas, aqui fora.
Não obstante o diretor, obviamente, inserir diversas piadas ou diatribes contra a guetificação racial, há uma homogeneização compositiva entre os comportamentos esnobes e competitivos das duas famílias apresentadas, uma negra e harmônica, outra branca e disfuncional. Num dos momentos mais sintéticos do filme, a “sombra” da alcoólatra interpretada por Elizabeth Moss regozija-se torpemente ao experimentar um batom pela primeira vez. Os benefícios da alta classe norte-americana são questionados em sua naturalização de benefícios. E, depois que os quatorze minutos prometidos para a chegada da polícia são ultrapassados sem que houvesse uma explicação plausível, “Fuck the Police” (do grupo de ‘rap’ N.W.A. – sigla para ‘Niggaz Wit Attitudes’) é executada automaticamente pelo aplicativo robótico de uma mansão praiana. Minutos antes, o conteúdo assumidamente problemático de uma canção sobre o cotidiano de um usuário contumaz de maconha é cantarolado em família, devidamente acompanhado pelo seguinte conselho: “não usem drogas”. Há algo errado na manifestação de tantas contradições? Muito pelo contrário. É precisamente aí que o filme extravasa a sua genialidade.
Encerrado de maneira tão estapafúrdia quanto impressionante, “Nós” é supremamente exitoso ao direcionar-nos os rizomas interpretativos não apenas de seu título, como dos inúmeros ‘mcguffins’ espalhados desde a seqüência inicial: no afã por demonstrar uma tendência assimilada dos militantes de esquerda ao que o crítico literário Roberto Schwarz chamou de “pessimismo de olé”, este filmaço obriga o espectador a refletir sobre a sua cumplicidade vilanaz em relação à manutenção de clichês e convenções de gênero que são também responsáveis pela invisibilização oportunista de males diuturnos. Afinal, as “sombras” apresentadas de maneira tão apavorante no filme são resquícios de nossos comportamentos diários, de nossa despreocupação com as conseqüências destrutivas de atos corriqueiros, como sentar numa poltrona de cinema e zombar da estultice de um pai de família negro, rico e acima do peso. Apenas para ficar num exemplo imediato, mas definitivamente não isolado.
Ao final da sessão, não faltarão hordas de espectadores e/ou críticos que apressar-se-ão em “explicar” os significados ocultos do versículo bíblico reiteradamente apresentado ao longo da projeção, o décimo primeiro versículo do capítulo 11 do livro de Jeremias, que prediz: “portanto, assim diz o Senhor: eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. O que este vitupério acrescenta à nossa leitura alardeada de um dos filmes mais fascinantes deste ano recém-iniciado? Que, mais uma vez, as chaves para a compreensão e interdição dos comportamentos iracundos e justificadamente invejosos do filme estão na autoavaliação dos comportamentos corriqueiros dos espectadores. “Nós” é, literalmente, um filme sobre nós. Não apenas nos Estados Unidos da América – como “adivinharam” alguns tradutores de siglas e acrósticos óbvios – mas em todo e qualquer lugar atingido pela chaga economicamente neoliberalista. Que o filme tenha sacrificado sua própria coerência interna para demonstrar-nos isso foi quase um ato de martirização discursiva. Insisto: é um filme absolutamente genial!



