Ao comentar sobre o processo de filmagem de seu longa-metragem de estréia, “The City of Mirrors: a Fictional Biography” (2016), o cineasta vietnamita Truong Minh Quý disse que seus pais acharam estranho que ele pedisse para que ambos atuassem, num projeto que era inicialmente documental. Mais que isso: o diretor confessou ter “mentido” até mesmo nalgumas situações reconstitutivas, visto que o personagem real que aparece creditado como ele próprio é, na verdade, o seu irmão mais novo. A verve ensaística desse tipo de imersão autobiográfica permite o flerte com estratagemas ficcionais, afinal assumidos desde o título do filme. É mais ou menos o que o chinês Bichun Yang — que prefere ser chamado pelo prenome Ricky – fez em seu primeiro longa-metragem, “Uma Casa sem Cerimônia” (2025).
Vencedor de dois importantes prêmios – Melhor Longa-Metragem, segundo o Júri Jovem e o Júri Oficial – na terceira edição do Festival Internacional de Cinema de Maceió (Revoada), este filme rememora algumas situações imediatamente posteriores à quarentena preventiva para a COVID-19, na Região Administrativa Especial de Hong Kong, agora reintegrada à China. No filme, Ricky — apelidado Dede — é mostrado como um violonista em crise com a própria arte, que volta para a casa dos pais, e tenta convencê-los a se mudarem do lugar onde viveram por mais de quatro décadas, por conta das más condições do edifício. Eles relutam, o que instaura um primeiro desentendimento familiar.
Interagindo com seus parentes de maneira automática e quase inemotiva, Ricky consente em tocar violino junto à sua mãe, enquanto seu irmão refere-se a ele como “o artista”, deixando evidente uma distinção de formações e percursos de vida. Enquanto fazem as suas refeições, um quadro gigantesco de Mao Tsé-Tung [1893–1976] ostenta a sala de jantar, denotando um esforço para reinserir os ideais comunistas naquele território, progressivamente dominado pela lógica capitalista. À medida que o filme avança, diversas situações farão com que os personagens reais lidem com a falta de dinheiro, sendo obrigados a abdicarem de alguns direitos básicos, como as celebrações fúnebres da avó de Ricky, que falece repentinamente, após uma queda.
Numa cena que deixou vários espectadores atônitos, Bichun Yang registra cinematograficamente os derradeiros suspiros da idosa, que morre diante da câmera. Ao invés de desencadear reações melodramáticas, tal situação dolorosa é mostrada quase como um contratempo comercial, em que os filhos e netos da senhora precisam administrar, às pressas, os detalhes de seu enterro, lidando com os altos preços dos procedimentos relacionados, como a quantidade de letras a ser talhada em sua lápide. É como se, nesta transição de ideário político, um mesmo espectro de impessoalidade rondasse aquela família, que se esforça para demonstrar afeto entre os seus integrantes. Em sequências bonitas de tentativa de intimidade, Ricky e sua companheira se deitam juntos, brincam com um cachorro e banham-se, enquanto ela urina, ao mesmo tempo em que discutem sobre as dificuldades de cuidados exigidos pelo pai dela, que sofre do Mal de Alzheimer…
O perene olhar perdido de Ricky, integrado ao modo desengonçado como o seu corpo tenta se reintegrar àqueles ambientes domésticos, confere ao filme uma tragicidade inata, que implode no instante em que Ricky executa a “Pequena Serenata Noturna” mozartiana, no topo de um prédio, antes de destruir o seu violino. A câmera do realizador perscruta o que pode ser entrevisto nas janelas da vizinhança, de modo que percebemos pessoas dançando, pipas sendo lançadas no ar e familiares abraçando-se empolgados, a despeito das condições depauperadas dos prédios em que eles vivem. A família Yang, por sua vez, se esforça para encontrar um modo próprio de comunicação afetiva, que é sagazmente trazido à tona num ‘flashback’, quando percebemos que, antes de falecer, a avó de Ricky o reconheceu, insistindo em dizer que ele é “um bom menino”. Os enquadramentos servem-se de um procedimento caro aos filmes de terror, que é o “espaço negativo”, correspondente ao “‘vazio’ ao redor das formas principais”, para utilizar uma definição utilizada pelos professores Rodrigo Carreiro e Laura Loguercio Cánepa, que complementam: “na cinematografia, refere-se à área ao redor dos principais atores (ou objetos) em cena, que não está preenchida por outros elementos”. É o que parece perseguir Ricky e seus familiares, mesmo quando eles estão cercados pelos funcionários de um cemitério. Trata-se de um filme que borra as fronteiras entre a linguagem documental e a ficção, a fim de chamar a atenção para uma temática recorrente no cinema do leste asiático, que é a redescoberta da identidade, em meio às violentas transformações políticas e socioeconômicas do entorno. Chega a ser aflitivo, portanto, e mui recompensador, no modo corajoso como o realizador compartilha conosco as suas angústias comunitárias!
Wesley Pereira de Castro.
Fonte da imagem: ‘print’ de tela, extraído de arquivo do filme, fornecido pelo diretor.



