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“Fizemos um acordo: eu filmava o trabalho; ele filmava a diversão!”

“Fizemos um acordo: eu filmava o trabalho; ele filmava a diversão!”

Na noite do dia 10 de julho de 2019, o polêmico texto-base da reforma previdenciária brasileira foi aprovado na Câmara dos Deputados, com uma votação expressiva de 379 votos favoráveis e 131 contrários. Com esta votação, mais um retrocesso abissal foi instaurado pelo atual (des)governo do presidente Jair Messias Bolsonaro, interferindo drasticamente nas condições mínimas necessárias à solicitação de aposentadoria por parte dos trabalhadores brasileiros. Além de o processo estar mais dificultoso, em termos etários, os ônus direcionados ao proletariado são incontáveis. Uma tenebrosa promessa de campanha foi cumprida, portanto. E quem perde, como de praxe, é a camada mais elementar da classe trabalhadora…

Oportunamente, na mesma semana estreou comercialmente o longa-metragem “Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar” (2019, de Marcelo Gomes), sobre as memórias de infância do diretor, quando, numa viagem com o pai, conheceu uma cidade batizada em tupi-guarani com um nome que significa “terra da felicidade”: Toritama, em Pernambuco. Nas lembranças de Marcelo Gomes, entretanto, o local era pacato e silencioso, e a calmaria surgia como apanágio rural. Em sua visita hodierna, o cineasta deparou-se com um contexto radicalmente transformado: convertida em “capital do ‘jeans’”, esta pequena cidade nordestina vive num frenético ritmo fabril, em que os ruídos altissonantes e aprisionantes da produção de mercadorias invadem os ambientes domésticos. Cada residência toritamense converte-se num facção produtiva, em que os moradores trabalham mais de oito horas por dias, cosendo calças e outras vestimentas à base de tecidos ‘jeans’. Mas, aparentemente, não há patrões… Isso é suficiente para ser comemorado?

Um dos maiores méritos do filme é a condução antitética de impressões, todo o tempo contrastando a caótica situação atual da cidade, à mercê do ritmo fabril onipresente, com as lembranças da placidez de outrora. As dissonâncias são abundantes na direção de fotografia, em que ‘outdoors’ gigantescos impõem-se numa paisagem deveras ressecada. Porém, o filme não se restringe a isso: a perplexidade narrativa do diretor abre espaço para a análise de contradições-chave da exploração capitalista, acatada como benéfica pelos moradores-trabalhadores, visto que todos comemoram serem “funcionários de si mesmos”. Ou seja: ainda que descrevam uma rotina de labuta que consome mais da metade das horas de cada dia (incluindo os domingos), os toritamenses enumeram vantagens financeiras preferíveis em relação à estabilidade empregatícia. Acham ótimo que não recebam um salário fixo, mas alguns percebem que estão apartados dos benefícios previdenciários, sobretudo no que tange às possibilidades de aposentadoria. Com o enrijecimento das regras supracitadas, os malefícios só pioram…

Num momento bastante interessante, um dos moradores entoa um discurso paramarxiano espontâneo que lamenta a substituição da religiosidade pelo dinheiro. Ao comentar que, antigamente, às 18 horas, toda a cidade ouvia a execução radiofônica da “Ave Maria”, Marcelo Gomes opõe uma filmagem contemporânea em que, no horário mencionado, vários jovens costuram calças enquanto dançam ao som de uma canção do grupo Racionais MC’s. Ao enfatizar a excruciante repetição de um barulhento trabalho braçal, o diretor elimina ostensivamente o som direto e insere uma música debussiana, mas a angústia permanece. O trabalho é geralmente apresentado em seu ritmo desumanizador, mas sob o discurso sorridente das pessoas, que, conforme percebemos a posteriori, justificarão este ímpeto sacrificial a partir do anseio de viajarem para uma cidade litorânea no Carnaval. É daí que provém o título do filme, emprestado da canção de Chico Buarque executada durante os créditos finais…

No derradeiro quartel do filme, Marcelo Gomes estreita ainda mais a relação desempenhada com o espirituoso Leonardo dos Santos, apelidado Léo, inicialmente flagrado dormindo numa das “facções” improvisadas, e pouco a pouco convertido em porta-voz dos cidadãos de Toritama, ao afirmar que o trabalho como costureiro é bem menos desgastante que todos os outros que realizara ao longo de sua vida. Louva o trabalho duro como propiciador de silêncio – que impede que o homem recaia na perdição engendrada pelos malefícios da língua, que, segundo ele, “movimenta-se a mais de trezentos quilômetros por hora” – e confessa um certo pendor para o alcoolismo. Consente em compartilhar com o diretor as imagens filmadas por ele em seu retiro carnavalesco numa praia, tal qual acontece com os demais cidadãos-funcionários, que chegam a vender os eletrodomésticos às pressas para conseguirem pagar a viagem. Ao voltarem, precisam trabalhar mais, a fim de recuperarem aquilo que foi vendido. Pergunta-se se isso vale a pena. A resposta é generalizadamente afirmativa. E é assim que a opressão capitalista atinge o seu píncaro: tornando-se onipresente não apenas nas horas inglórias de um trabalho árduo e infindo, mas também nos padrões feriais induzidamente estandardizados!

Ao término de “Estou me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar”, lamenta-se que não seja devidamente explicitada a origem da matéria-prima para a produção exorbitante de ‘jeans’ na cidade observada pelo diretor. Em verdade, a cadeia produtiva em si não o interessa – por mais que ele exiba distintas fases do processo, como a onipresença das facções, os manequins voluntários de determinados modelos de vestimenta, as sugestões de idéias indumentárias por parte de estilistas improvisados e a comercialização em feiras dominicais – mas a modernização espúria e unidimensional de uma cidadezinha rural bastante cálida, em que bodes eventualmente morrem ao atravessarem uma movimentada estrada, numa renitente conservação de um hábito pecuário caro às memórias afetivas do diretor. Daqui por diante, os toritamenses, como a grande maioria dos brasileiros pobres, quiçá faleçam antes do direito a uma merecida aposentadoria. Produtos são mais valorizados que pessoas hoje em dia, e nenhuma marchinha de carnaval atenua esta mazela. “Somente quando falta energia elétrica, os habitantes da cidade podem conversar um pouco”, comenta o diretor em determinado instante. Quem compra tanta calça ‘jeans’, afinal de contas?

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