Após a conta de Donald Trump ter sido suspensa no Twitter, por causa das associações exortativas com a invasão do Capitólio, por seus apoiadores partidários, em 06 de janeiro de 2021, chamou a atenção um questionamento realizado por figuras proeminentes da esquerda brasileira. O deputado Marcelo Freixo, entre outros, perguntava: “em que país do mundo o Ministério da Saúde foi punido pelo Twitter por disseminar ‘fake news’ sobre a pandemia [da COVID-19]?”. Pois é, aconteceu no Brasil…
Se, na maior parte dos países, o primeiro mês de 2021 foi marcado por iniciativas referentes a campanhas profiláticas de vacinação, no Brasil, o presidente e sua corja negacionista segue determinando a tônica destrutiva, que multiplica ainda mais a quantidade de mortos em decorrência do CoronaVírus. As notícias transmitidas pelos telejornais são alarmantes não apenas pelas tragédias em si, mas pela demonstração de que a desinformação e o ódio seguem defendidos fanaticamente pelos apoiadores do referido (des)governante genocida, que age como um sabotador contumaz de todas as funções que foram-lhe confiadas em seu mandato inicial de quatro anos.
O adjetivo em pauta invoca o título de um dos filmes mais subestimados do cineasta britânico Alfred Hitchcock [1899–1980], que, sob a égide dos esforços propagandísticos de guerra em Hollywood, realizou, através de “Sabotador” (1942), uma obra externamente afim às convenções de gênero da época, sem a profusão dos rasgos sumamente autorais que o eternizaram enquanto “mestre do suspense”. Vendo o filme hoje em dia, percebemos que há muitas perspectivas indiciais em meio à sua estrutura enredística convencional.
Neste filme, o diretor define a sinopse como sendo um ‘MacGuffin’ – ou seja, um mero pretexto para que aconteçam os encontros entre pessoas, que interessam-lhe efetivamente – mas esta talvez seja a sua trama mais assumidamente teleológica, visto que há não apenas um crime falsamente imputado ao protagonista – como é típico – mas uma tramóia que precisa ser desvendada, a fim de preservar a própria democracia estadunidense. Em mais de um sentido, conforme perceberam diversos críticos, este filme antecipa “Intriga Internacional” (1959), ainda que ele possua méritos próprios que merecem ser aqui ressaltados.
A principal situação do roteiro ocorre logo na seqüência inicial: um acidente numa fábrica de aviões faz com que um funcionário, Barry Kane (Robert Cummings), seja acusado não apenas de sabotar o estabelecimento como também de assassinar o seu melhor amigo num incêndio induzido. Ocorre que Barry percebe que havia um infiltrado vilanaz na fábrica, de nome Frank Fry (Norman Lloyd), e foge disposto a encontrar o verdadeiro responsável pelo crime, o que faz com que ele descubra uma conspiração internacional financiada por idosos riquíssimos da alta sociedade californiana. E tudo isso é pretexto para que percebamos chistes mui valiosos nos diálogos, co-escritos pela espirituosa escritora Dorothy Parker [1893-1967].
Tão logo Barry evade-se da residência da mãe atormentada de seu amigo falecido, ele consegue carona com um caminhoneiro entediado, ansioso por qualquer tipo de ação, mesmo que isso implique em enganar a Polícia. Alegando que somente quem é solteiro pode assobiar à vontade, este caminhoneiro ajuda Barry a escapar da prisão, depois que, algemado, ele pula de uma ponte, num rio agitado. Mais uma vez, a obsessão hitchcockiana pelas algemas insurge-se!
Encharcado, Barry encontra refúgio na residência confortável de um pianista cego (Vaughan Glaser), que gaba-se de possuir a capacidade de “poder enxergar coisas intangíveis, como a inocência”. Apóia de imediato o rapaz que lhe pede comida e abrigo, até que sua sobrinha Patricia (Priscilla Lane) o visita, e assusta-se ao perceber as algemas. Seu tio pede que ela “não seja tão conservadora” e, daí para a frente, tem início uma série de quiproquós heróicos assemelhados àqueles que vimos em “Os 39 Degraus” (1935), filme bastante elogiado da fase inglesa do cineasta. Entretanto, há um diferencial: aqui, ele pôde confrontar os altos ideais da democracia firmadora dos Estados Unidos da América a uma noção de humanismo que justifica a desobediência eventual às leis, para utilizar a paráfrase de uma declaração do solidário pianista.
Uma das seqüências mais inauditas do filme é quando Barry e Patricia são resgatados por uma trupe circense, na estrada, e as pessoas dividem-se quanto à concessão de guarida ao casal suspeito e perseguido. Um anão ranzinza cuja alcunha é Major (Billy Curtis) reclama que não concorda em participar de qualquer votação envolvendo a possibilidade de auxiliar os fugitivos, e é reprendido pelo líder da trupe: “fascista!”. Este último é um homem de aparência esquelética, casado com uma mulher barbada e que convive com gêmeas siamesas que odeiam-se, com uma mulher assaz corpulenta e com outras pessoas consideradas aberrações pelos estritos padrões de beleza ocidental. Defesa de princípios levada a cabo por este homem: “as pessoas normais tendem a ser insensíveis”. Como não declaram-se dessa maneira, eles auxiliam o casal protagonista.
O desfecho do filme é famoso pelas situações de tensão ocorridas no alto da Estátua da Liberdade, mas convém não comentar as mesmas, visto que isso poderia atrapalhar a fruição do espectador. Trata-se de um filme de suspense, afinal de contas. Mas é muito interessante cotejar tudo o que é visto e proferido às abundantes demonstrações de desumanidade por parte de representantes da extrema direita (e, infelizmente, também por parcelas intransigentes da esquerda) no panorama político-partidário contemporâneo. Infelizmente, hoje em dia, os “homens errados” que outrora eram defendidos na excelente filmografia de Alfred Hitchcock, fazem jus à adjetivação nociva. No Brasil, ser obrigado a considerar Jair Bolsonaro o presidente da República ultrapassa as raias do erro: é uma abominação altissonante, passível de criminalização hedionda. É a confirmação da pior das sabotagens, infelizmente!
Wesley Pereira de Castro.