O acachapante vazamento de informações sobre conversas envolvendo o atual ministro da Justiça do Brasil Sérgio Moro – quando ainda era juiz e conduzia o julgamento controverso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – trouxe à tona uma discussão emergencial sobre a deontologia jornalística. Em períodos de crise, sitiamento da liberdade de expressão ou intensa batalha ideológica, convém servir-se noticiosamente de dados obtidos de maneira ilegal?
Como se sabe, as referidas conversas, que servem de base a uma série de reportagens conduzidas pelo jornalista investigativo Glenn Greenwald, foram adquiridas através de uma fonte anônima, possivelmente um ‘hacker’, o que leva os defensores do ministro a uma deturpada defesa da voluntariedade na entrega das informações. Porém, foi justamente este ministro quem autorizou a publicização midiática de telefonemas íntimos de políticos sob investigação, quando ele ainda era juiz. Dentre os expostos indevidamente, estavam a então presidenta da República Dilma Rousseff. Tem-se aí um caso evidente de parcialidade dos meios, popularmente conhecida como “dois pesos, duas medidas”? Para o jornalismo denuncista, não foi sempre assim?
Não por acaso, Glenn Greenwald está a cargo desta série de reportagens: ele foi justamente o jornalista que conduziu o escândalo envolvendo as afirmações do analista de sistema Edward Snowden, que revelou detalhes estrondosos de vigilância ilícita por parte de agências de inteligência e segurança norte-americana. Ou seja, este jornalista chamou a atenção da imprensa internacional para a obtenção contínua de dados ilegais (e íntimos) de potencialmente todos os cidadãos do mundo pelo Governo de um determinado país. O que está em foco é a gravidade da denúncia, não a obtenção dos dados – desde que possuam a sua veracidade devidamente comprovada.
No afã por desmerecer este tipo de investigação, os envolvidos em falcatruas de larga escala instauram o desmerecimento da atividade jornalística, profissão esta que foi marcada por suspeitas desde a sua origem, visto que, em muitos casos, a fronteira noticiosa entre público e privado é sobremaneira tênue. E, obviamente, o cinema hollywoodiano soube explorar muitíssimo bem tal peculiaridade atrativa, de modo que urge recomendarmos um dos clássicos absolutos sobre esta profissão: “Jejum de Amor” (1940), dirigido pelo mestre cinematográfico Howard Hawks (1896-1977).
Baseado numa célebre peça teatral de Ben Hecht e Charles MacArthur – já filmada anteriormente e levada ao cinema mais duas vezes, depois de “Jejum de Amor” – este filme tornou-se icônico em razão da velocidade extremada com que são apresentados os seus diálogos. Protagonizado por Cary Grant e Rosalind Russell, o roteiro deste filme apresenta-nos a uma repórter, Hildy Johnson, que está prestes a pedir demissão, pois tenciona casar-se com um corretor de seguros e ter “uma vida normal” numa cidade do interior. Ocorre que o seu chefe, de nome Walter Burns, é também seu ex-marido e sabe que ela não consegue controlar o seu faro investigativo, de modo que, através de uma série de recursos inescrupulosos, hipertrofia uma determinada situação noticiosa, a fim de que a mesma seja convencida a escrever uma matéria emergencial e permanecer na profissão. Obviamente, ela cairá nesta armadilha e o que se segue é uma sucessão de confusões magistralmente orquestradas, que justificam a consideração de Howard Hawks como um dos melhores cineastas de todos os tempos.
Apesar de o destaque genérico estar nos quiproquós românticos envolvendo o casal central, a exposição do ‘modus operandi’ jornalístico – ao menos, de um romantizado cotidiano profissional, radicalmente alterado após o advento da internet – obriga-nos a uma reflexão sobre os apanágios maquiavélicos da profissão, em que, de fato, os fins visados justificariam quaisquer meios de obtenção informativa. Será mesmo? Sardônico em seus conhecidos procedimentos de inversão funcional e/ou comportamental, Howard Hawks insere os personagens em diversas relações controversas, principalmente envolvendo o noivo pacato de Hildy, que é preso injustamente três vezes (por causa de falsas acusações orquestradas por Walter), tem a sua mãe seqüestrada e quase senta no colo de seu rival. Progressivamente, ele é deixado de lado em relação à atenção de Hildy, de tão compenetrada em sua diligência investigativa que ela fica…
Por fim, a ênfase crítica extra-cinefílica: o assunto que leva Hildy a desistir de seu casamento e manter-se profissionalmente ativa possui justamente um atordoante viés político. Trata-se de uma elaborada tramóia partidária envolvendo o assassinato acidental de um policial negro por um criminoso atabalhoado, às vésperas de uma eleição em que governador e prefeito possuem interesses opostos. Como o enredo do filme serve como pretexto dominante para que acompanhemos a troca de rusgas entre repórteres, os destalhes escabrosos desta tramóia são atravessados pelo ritmo frenético da obra, mas mantêm-se evidentes enquanto demonstração de que a ilegalidade instrumental, o desrespeito pelo ser humano e o enviesamento discursivo eventualmente fundamentam uma boa cobertura jornalística. Se, ao desfecho, uma noção pretendida de verdade vem à tona e os culpados são apontados, todo e qualquer meio de obtenção noticiosa é válido? Esta é a pergunta que ficará em aberto ao longo de nossos percursos vitais. Acompanhemos atentamente a História – ou melhor: participemos dela!



