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Sobre um dos filmes brasileiros mais aguardados de 2020: tudo começa em Setembro!

Sobre um dos filmes brasileiros mais aguardados de 2020: tudo começa em Setembro!

Quiçá o mais tradicional certame cinematográfico brasileiro, o Festival de Cinema de Gramado ocorre anualmente desde o ano de 1973, na cidade homônima do Estado do Rio Grande do Sul. Após a extinção da Embrafilme e o desmantelamento distributivo do cinema nacional no Brasil – durante o mandato interrompido do presidente Fernando Collor de Mello, que sofreu ‘impeachment’ em 1992 – o Festival passou a premiar também filmes latino-americanos, mas são as produções brasileiras que mais chamam a atenção.

Diante da extrema malevolência do desgoverno de Jair Bolsonaro, sob as incertezas cruéis da ausência de um Ministério da Cultura e concomitante à pandemia do CoronaVírus, cujos óbitos já ultrapassaram o lamentável número de cento e trinta e seis mil, a quadragésima oitava edição do Festival precisou adaptar-se a condições similares às das plataformas de ‘streaming’. Ou seja, os curtas e longas-metragens que concorrem aos Kikitos não foram exibidos presencialmente, em salas adequadas de cinema, mas numa emissora fechada de TV, o Canal Brasil.

Dada a improvisação dessa estratégia, muitas reclamações advieram da deformação das qualidades técnicas intrínsecas dos filmes, sendo que um deles foi particularmente prejudicado, justamente o mais aguardado do evento: “Todos os Mortos” (2020, de Marco Dutra & Caetano Gotardo). Além do inventivo desenho de som do filme ter sido maculado pela transmissão televisiva, os créditos finais foram projetados de maneira acelerada, o que deixou os responsáveis pela produção compreensivamente desolados. Mas o filme é muito maior que estes deslizes alheios, e merece ser comentado entusiasticamente…

Iniciado em setembro de 1899, no feriado comemorativo da Independência do Brasil em relação a Portugal, temos como primeiro fato significativo do enredo o falecimento da empregada doméstica Josefina (Alaíde Costa), que trabalha para a orgulhosa família Soares. Exímia moedora de café, Josefina instaura um luto oportunista na matriarca Isabel (Thaia Perez), que fica cada vez mais prostrada, em razão de um cabedal de situações preocupantes: seu marido está afastado há muito tempo da residência, por causa de problemas na colheita cafeeira de sua fazenda em declínio; sua filha mais nova, Ana (Carolina Bianchi), demonstra sinais frequentes de instabilidade emocional e psicológica; e a mais velha, a freira Maria (Clarissa Kiste), não consegue refrear os traços desta inevitável decadência familiar. Chega a ouvir de uma colega de hábito – numa excelente participação da atriz Gilda Nomacce – que a palmatória é a melhor solução quando não se entende o que o outro fala… Eis um importante sintoma!

Em paralelo aos fatos que expõem o cotidiano exaurido da família Soares, conhecemos a escrava liberta Iná (Mawusi Tulani), trazida à cidade de São Paulo, com seu filho João (Agyei Augusto), para realizar ritos africanos, no afã por apaziguar as visões de avantesmas que atormentam Ana. Porém, Iná rejeita o mau uso de sua fé e deseja reencontrar seu marido Antônio (Rogério Brito), que viajara antes dela, em busca de trabalho. Se a família branca definha por causa da culpa acumulada pelas injustiças cometidas durante a época escravagista – a ponto de Isabel enfiar a mão numa panela de água fervente –, a família negra e emancipada adapta-se progressivamente ao ritmo citadino, aprendendo a escrever o sobrenome concedido (Nascimento) e especializando-se nas diligências empregatícias que obtêm. E o filme progride lentamente, independente das reviravoltas roteirísticas que poderiam ser ansiadas ao sabermos que o filme flerta discretamente com o gênero horror…

Sobremaneira politizado e derivado de uma rigorosa pesquisa histórica, “Todos os Mortos” propõe uma imersão sinestésica ao espectador: os eventos apresentados não obedecem à estrutura realista tradicional. Montagem abrupta, posicionamentos hieráticos dos atores, partituras dodecafônicas, referências estendidas à poesia simbolista e muitos outros aspectos fílmicos remetem diretamente ao estilo straubiano, pétreo, imanente. O roteiro é disposto como um filme-coral, havendo contínuos rompantes polifônicos na trilha musical. A reconstituição de época convive com aspectos contemporâneos da metrópole paulistana, a fim de evidenciar o impacto das ações dos personagens ao longo dos anos. E, por mais positiva que seja a abordagem racial, no que tange ao desenvolvimento da família Nascimento, o fantasma principal é o racismo, tão assombroso hoje em dia quanto no século XIX.

Um dos personagens cuja presença no filme é mais perturbadora atende pelo nome de Eduardo (Thomás Aquino), mulato apadrinhado pela vizinha portuguesa da família Soares, dona Romilda (Leonor Silveira, atriz-fetiche do falecido cineasta Manoel de Oliveira). Obcecado pela obra de Cruz e Sousa [1861-1898], por motivos óbvios, ele ousa confessar uma similaridade comportamental em relação à personagem Ana, que amplifica ainda mais o escopo de subversões temáticas do filme, ao associar suas tendências homossexuais a uma conjuntura classista. É um filme que requer muito debate após a sessão!

Desconfortável em mais de um aspecto, “Todos os Mortos” é merecedor de quaisquer láureas recebidas no Festival em que concorre, como também justifica todo o desconcerto crítico que vem causando desde que foi exibido no Festival de Cinema de Berlim, no início de 2020. Em sua estrutura tramática, quatro feriados demarcam a cisão social entre as famílias branca e negra, com consequências distintas para ambas: a já mencionada celebração da Independência; o dia de Finados; o Natal; e o Carnaval do ano seguinte. O filme inicia-se em setembro de 1899, conforme já foi dito, e não termina após a projeção: ele permanece conosco, obriga-nos a estudar e a refletir sobre o que vivenciamos no cotidiano. É uma obra imperfeita, mas impressionante em sua combinação de autoralidades, visto que seus diretores possuem sólidas carreiras no cinema brasileiro. Aplausos de pé para seus méritos grandiloquentes!

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