A produção cinematográfica contemporânea é nítida e compreensivamente influenciada pelas temáticas jornalisticamente em evidência: ainda que os arroubos lingüísticos de caráter experimental e/ou individual não sejam abandonados e que os dramas relacionais ou biográficos permaneçam dominantes, as sinopses constantes na safra de filmes lançados em festivais possuem recorrentes questões vinculadas aos sofrimentos de imigrantes e refugiados. Observando-se o catálogo disponibilizado pela quadragésima quinta edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, deparamo-nos com vários títulos sobre este tema, seja por vias indiretas [como no excelente documentário “Sr. Bachmann e seus Alunos” (2021, de Maria Speth)], seja por vias explícitas, conforme notamos em “Medo” (2020, de Ivaylo Hristov).
Escolhido para representar a Bulgária na possibilidade de indicação a uma vaga na categoria de Melhor Filme Estranheiro, no Oscar 2022, “Medo” possui um diferencial singelo em relação a inúmeros títulos semelhantes: aborda a questão tensa dos imigrantes ilegais na Europa através de um viés ousadamente cômico. O que não elimina uma dramaticidade intensificada, contornada no desfecho pelo incentivo à esperança. A protagonista Svetla (Svetlana Yancheva) trabalha como professora numa cidadezinha rural, que fica localizada na fronteira entre a Bulgária e a Turquia. Como não há mais crianças matriculadas na escola, Svetla é demitida. Desesperada por causa da falta de perspectivas empregatícias, ela comparece diariamente ao setor de empregos, sem sucesso. Faz as suas compras a prazo e dorme com uma faca debaixo do travesseiro, alegando-se sentir muito assustada depois que seu marido faleceu, numa viagem de pesca…
Constantemente assediada pelos militares locais e por um gângster da região, ela permanece solitária em sua residência: cuida com zelo do túmulo de seu esposo e tenta manter uma convivência minimamente respeitosa com seus vizinhos. Até que a constante passagem de imigrantes pelo vilarejo deixa as pessoas em polvorosa: a mercadora que atende Svetla, por exemplo, demonstra-se hipnotizada enquanto assiste a programas de auditório que destilam preconceitos através da oportuna instauração do medo patriótico e das onipresentes paranóias de crise econômica – e essa é a deixa para que a xenofobia seja ainda mais intensificada entre os cidadãos!
Numa demonstração de autocrítica midiática, o diretor reconstitui algumas reportagens televisivas, nas quais uma jornalista frustra-se quando os militares não reagem com suficiente violência aos imigrantes. Ela anseia pela difusão da narrativa de que estes andam armados e são perigosos, o que é efetivamente negado: eles não apenas são inofensivos, como são muito mais vítimas que culpados do que quer que lhe acusem. Um grupo de afegãos é capturado pelo grupo militar, enquanto Svetla, que caçava na floresta que circunda a sua casa, depara-se com um malinês (Michael Flemming) perdido, com quem obviamente passará a conviver…
Após tentar, em vão, convencer a prefeita da cidade (Kristina Yaneva) a acolher este refugiado africano, ela permite que ele instale-se em sua casa e vista as roupas de seu marido. O refugiado esforça-se para expressar-se em inglês, enquanto Svetla conversa apenas em búlgaro. Pouco a pouco, eles passam a compreender-se mutuamente – e logo será descoberto que este malinês, de nome Bamba, é médico. Isso não impedirá que ele seja alvo de muita discriminação, a ponto de ser tachado de “macaco falante”. Justificativa dos acusadores: “era tudo pacífico até estes imigrantes chegarem aqui”. Quem é alvo do ódio gratuito é justamente responsabilizado por isso!
Mantendo a envergadura cômica – a despeito de seu tema mui delicado – o roteiro deste filme possui cenas inventivas, como quando a prefeita da cidade precisa anunciar ao grupo de afegãos que eles serão instalados na escola desativada. Como ela não fala inglês, pede ajuda a um garotinho para que ele traduza o comunicado oficial. Porém, este garoto não sabe como explicar que o local não encontra-se em boas condições infraestruturais, o que é sintetizado pela prefeita na informação de que os banheiros estão sujos. Ele, então, não hesita – e traduz: “as privadas estão cheias de merda, mas é de coração”!
À medida que a relação entre Svetla e Bamba começa a afirmar-se como uma amizade, eles são mais e mais perseguidos pela população local: os antigos amigos dela passam a chamá-la de fornicadora com negros, picham as paredes de sua casa com palavrões e acusam-na de agravar os problemas de subdesenvolvimento econômico no país. E é nesse ponto que precisamos voltar ao cotejo com a realidade e perceber o quanto tais situações têm a ver com a reinstalação da extrema-direita política em muitos países. E isso é algo atávico. Basta observar o que consta nas letras dos hinos nacionais. Num adendo ao refrão búlgaro, por exemplo, ouvimos: “Inúmeros guerreiros caíram por nosso querido povo/ Mãe, dá-nos força/ Para perseverarmos em nosso caminho”. Esta exortação musical à belicosidade não é exclusividade deste país, infelizmente. Que o digam o “verás que um filho teu não foge à luta”, do Hino Nacional Brasileiro, ou o discutível verso “que um sangue impuro regue os nossos sulcos”, n’“A Marselhesa”.
Fotografado num belíssimo preto-e-branco, “Medo” possui um delicado momento em que algumas cores reaparecem, enquanto Svetla comenta: “as coisas simples são bem melhores que as requintadas”. Em muitos aspectos, este gracioso exemplar do cinema búlgaro direciona uma benfazeja centelha humanista a uma realidade social entulhada de desrespeito aos semelhantes (o que manifesta-se de maneira ainda mais violenta contra quem parece – ou é – diferente). Isso é importar-se: em sentido discursivo, é acolher!
Wesley Pereira de Castro.