No dia 18 de janeiro de 2023, poucos dias após a invasão golpista aos prédios dos Três Poderes por vândalos bolsonaristas (perdão pelo pleonasmo), em Brasília, o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet [1936–2025] publicou, em seu perfil de Facebook, uma entrevista concedida ao realizador sergipano Fábio Rogério, em que, declarando estar “em sã consciência, dono de todas as minhas faculdades e lucidez”, não se opôs aos atos destrutivos, no sentido de que, nas palavras dele, “essa depredação é uma depredação dos lugares do poder e eu não me identifico absolutamente com esses lugares, nem com o tribunal em que os juízes não têm mandato, são eternos”. Obviamente, tais declarações causaram muita celeuma, além de discordâncias contundentes entre os militantes da esquerda política, à qual o crítico obviamente se filiava. Esta discordância deixa evidente um fato essencial: o maniqueísmo político-ideológico é insuficiente para dar conta da gama variegada de opiniões e impressões que as pessoas manifestam diante de situações e eventos históricos.
Refletindo sobre isso, atestamos que o documentário “Apocalipse nos Trópicos” (2024, de Petra Costa) é bastante problemático naquilo que deseja transmitir: se, em seus trabalhos anteriores, a narração mui subjetiva da diretora serve para balizar a relação entre público e privado no cotejo com eventos cotidianos ou relatos jornalísticos, nesta produção mais ambiciosa, o pessoalismo deste intento soçobra. No documentário imediatamente anterior, “Democracia em Vertigem” (2019 — resenhado aqui), os comentários em primeira pessoa eram justificados pelo paralelismo estabelecido entre a maturação de personalidade da própria realizadora, que assume tantos os seus benefícios de classe quanto as suas volições progressistas. Neste filme mais recente, ela comete um equívoco crasso desde a abertura: conceder excessiva importância ao pastor evangélico Silas Malafaia, muito maior do que ele efetivamente desempenhou no apoio eleitoral a Jair Messias Bolsonaro, que se tornou Presidente do Brasil em 2018. O primeiro capítulo do filme, “O Influenciador”, deixa evidente que ela está indecisa quanto àquilo que deseja documentar…
Da maneira a que está habituada, Petra Costa preenche a sua narração com frases evasivas e/ou circunloquiais, declarando que está descobrindo relações a partir daquilo que ela apresenta, como se estivesse se surpreendendo, tanto quanto ela parece projetar no espectador. Para isso, ela não hesita em rebobinar uma determinada seqüência, a fim de esmiuçar movimentos cúmplices entre Jair Bolsonaro e Silas Malafaia, além de repetir frases e explicar sentenças que, por si só, são demasiado evidentes. Contrariando uma definição senso-comunal, Petra Costa não permite que seu documentário seja didático ou imparcial, e chega a ser repetitiva naquilo que pretende expor enquanto tese, partindo de um pressuposto deveras errôneo: ela refere-se aos evangélicos de maneira sempre coletiva, em bloco, negligenciando as distinções que ocorrem entre congregações e doutrinas. Para ela, as expressões surgem de maneira exclusivamente dicotômica: quando ela pronuncia o termo “evangélico”, quer dizer apenas “não-católico”, ignorando as nuanças que existem na diversidade religiosa brasileira.
Malgrado estes defeitos conjunturais, o filme é contundente no panorama que traça, de 2016 até 2024, abarcando o surgimento midiático do bolsonarismo, a pandemia da COVID-19 e toda a violência dos processos eleitorais de 2018 e 2022: algumas situações que a diretora conjuga, em sua narrativa documental, são assustadoras, fazendo jus ao título alarmista do documentário. Porém, mais uma vez, a sua obsessão em comentar o tempo inteiro o que está acontecendo — e que é facilmente discernível, em termos imagéticos — estraga o impacto de algumas imagens exclusivas, já que ela e sua equipe conseguiram aproximar-se, por algum tempo, do ambiente familiar de Silas Malafaia. Um momento digo de nota: quando ele se irrita com uma viagem de Jair Bolsonaro para os Estados Unidos da América, no caos que se seguiu ao resultado das eleições de 2022, dizendo que, em oposição, Luiz Inácio Lula da Silva teve “uma atitude de líder” ao não fugir da prisão, quando foi injustamente condenado. Para este tipo de oportunista, política é uma mera extensão de conchavos. Afinal, numa situação anterior, o próprio pastor fora apoiador da inédita eleição lulista, em 2002!
Em seu “Epílogo”, a diretora foi exitosa ao apelar à etimologia grega da palavra ‘apokálypsis’, que tem muito mais a ver com “revelação” ou “descoberta” que com o “fim do mundo”. Ao documentar uma correlação entre pentecostalismo e bolsonarismo que possui aparência satânica, Petra Costa obtém uma benfazeja objetividade, que atinge píncaros assustadores quando Silas Malafaia se exaspera contra outros motoristas, no trânsito, ou quando ele demonstra o “quão fácil” é entrar no Congresso Nacional, quando declara que é amigo do então presidente, além das diversas imagens de pessoas ajoelhadas ou deitadas em vias públicas, berrando orações em favor de um candidato beligerante em particular. Quando o próprio Lula aparece, a diretora é audaciosa ao comentar que a carta pedindo apoio aos evangélicos, que ele redigiu antes de sua terceira eleição, foi muito similar àquela que ele direcionou aos banqueiros, noutro contexto eleitoral, quando assegurou que não se interporia contra os anseios deles. Assim, Petra Costa ousou enfrentar o maniqueísmo dominante e auto-instituído, da mesma maneira que ela faz quando contradiz Silas Malafaia, no instante em que ele define democracia como “a imposição da vontade da maioria absoluta da população”. Nos créditos finais, uma versão cantada da “Oração de São Francisco” sucede uma oportuna execução de “Juízo Final”, na voz de Nelson Cavaquinho. O documentário pode ser bastante equivocado, mas escancara algo que não pode — nem deve — ser ignorado!
Wesley Pereira de Castro.
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