No dia 17 de maio de 2020, comemorou-se o trigésimo aniversário da exclusão, por parte da Organização Mundial da Saúde (OMS), do homossexualismo como pertencente à Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID). Por conta disso, esta data é celebrada como o Dia Internacional Contra a Homofobia. Dois dias antes, o músico norte-americano Perfume Genius – nome artístico de Michael Alden Hadreas, nascido em 25 de setembro de 1981 – lançou o seu quinto álbum de estúdio “Set My Heart on Fire Immediately” [em tradução livre, “ponha meu coração no fogo, imediatamente”], e cada uma das treze faixas deste extraordinário álbum serve como afirmação positiva da comemoração supramencionada.
Afligido por uma delicada doença inflamatória gastrointestinal e obviamente acometido pela depressão, a vida deste artista foi marcada por muita violência, tanto em sua própria residência quanto nos ambientes em que convivia. Foi obrigado a abandonar a escola, devido a constantes ameaças de morte e foi espancado, mais de uma vez, por ser abertamente ‘gay’. Como tal, suas músicas evidenciam as agruras decorrentes da incompreensão alheia acerca de sua própria sexualidade. Ou seja, Perfume Genius não é um mero artista homossexual, mas um compositor que faz disso o combustível-mor de suas canções exacerbadamente confessionais.
Neste disco mais recente, sobremaneira taciturno em relação aos trabalhos anteriores, há pelo menos duas obras-primas absolutas: o breve conto erótico intitulado “Jason” (faixa 04) e o hino dançante “Nothing it All” (faixa 10). Na primeira dessas faixas, ele narra o encontro com um rapaz heterossexual, quando tinha 23 anos de idade, em que, sob o efeito de bebidas alcoólicas, permitiram-se um flerte assimétrico. Conta-nos o eu-lírico, na abertura da canção, entre gemidos e num apaixonante falsete: “Jason me despiu/ Deitado em seus lençóis/ Ele não fez o mesmo/ Até de botas ele estava”. Sabe-se que Jason chorava bastante, quiçá envergonhado por nunca ter coragem de assumir suas preferências homoeróticas. Ao término do coito, ele expulsa o narrador de casa, que, em represália, rouba-lhe vinte dólares. Pouco mais de três minutos de canção, e é difícil segurar as lágrimas…
A segunda das faixas destacadas possui um aspecto mais dançante, assemelhando-se deveras à canção mais famosa do disco anterior do cantor, “Slip Away” (faixa 02 do ótimo “No Shape”, lançado em 2017). Entretanto, a envergadura sumamente emocional da letra não deixa dúvidas quanto às suas intenções consoladoras: “tu podes dizer o que quiser, mas eu já sei/ Nosso corpo está quebrado numa única batida/ A tristeza que tu carregas paira como um fantasma/ Eu vou rasgá-la e utilizá-la como uma fita/ Entregue-a”. E, assim, dançamos catarticamente!
Pelo impacto sentimental destas canções, pode-se traçar um marco comum em relação à extrema coerência deste álbum e à coesão precisa demonstrada em cada faixa composta pelo artista. Perfume Genius iniciou a sua carreira musical tardiamente, quase com trinta anos de idade, mas soube compensar habilmente o tempo dedicado a outras atividades (e à própria sobrevivência), conforme fica evidente nos versos de abertura do álbum, na faixa “Whole Life” (01): “metade da minha vida inteira se foi/ Deixe-a à deriva e lave-a/ Foi apenas um sonho que tive/ Foi apenas um sonho”…
Esse tom melancólico é reproduzido em quase todos os títulos das canções, conforme detectamos em “Without You” (03 – em tradução: “sem você”), “Your Body Changes Everything” (07 – “teu corpo modifica tudo”) e “Borrowed Light” (13 – “luz emprestada”). E as letras não ficam atrás, em termos de plena assunção existencial: “por debaixo do sentimento, eu estou sentindo algo/ Quando o centro cai, pelo menos vou ter a primavera” [03]; “Eu mal posso respirar/ E, agora, tu estás sobre mim/ E tua sombra sufoca/ Tu podes sentir o meu amor?/ Tu sentes o mesmo?/ Tu podes sentir o sol, como mel?” [07]; “Não, Deus/ Não dessa vez/ Nenhum satélite/ Apenas esteja aqui, Jamie/ Apenas deixa aquela coisa antiga morrer” [13]… Glupt!
Não obstante estar num relacionável estável e duradouro com o também músico Alan Wyffels – co-compositor de algumas de suas faixas –, a solidão e a marginalidade são temas recorrentes na discografia de Perfume Genius, bem como o inequívoco pendor para a polêmica, em razão de todas as agressões que sofreu por assumir-se precocemente. Como nasceu antes da promulgação da OMS que deixou de considerar a homossexualidade enquanto doença, Mike Hadreas deve ter acostumado-se com o termo hoje defenestrado ‘homossexualismo’, em razão de seu sufixo designar um ranço patológico. No controverso livro de psicologia jurídica “Homossexualismo e Delinqüência”, publicado pelo psiquiatra brasileiro Luiz Ângelo Dourado na década de 1960, tenta-se demonstrar a relação indissociável entre a prática homossexual e a criminalidade. A comemoração do dia 17 de maio é importantíssima, portanto!
No quarto capítulo deste livro, o autor afirma que “não é incomum encontrar-se a homossexualidade na epilepsia, esquizofrenia, paralisia geral e demência senil”, reforçando o alegado caráter patológico desta tendência afetiva. E define-se a homossexualidade neurótica como sendo aquela em que o indivíduo considera-se “infeliz por ser o que é, situação que denuncia conflito psicológico”. Mas, e quando esta infelicidade advém de traumas cravados na pele, tal como ocorreu com os espancamentos sofridos pelo jovem Mike Hadreas? Ou por causa do estupro sofrido, ainda na adolescência, pelo trovador canadense Rufus Wainwright? Ou em decorrência das imposições de marginalidade que abundam nas canções ressignificadoras do recifense Johnny Hooker?
A despeito da chaga médico-histórica que acompanha a palavra homossexualismo, convém acrescentar que o sufixo -ismo também designa “sistema político”, sendo defendido por posturas mais radicalmente anticapitalistas, como aquelas percebidas nos filmes iniciais de Gus Van Sant, Todd Haynes e Gregg Araki na publicização do ‘New Queer Cinema’ ou nas letras e performances agressivas da extinta banda pernambucana Textículos de Mary. Em pleno século XXI, em meio à possibilidade de surgimento de benesses revoltosas como aquelas apregoadas pela ‘rapper’ sergipana Ísis Broken, ainda ouvimos relatos aberrantes de agressões advindas da chaga homofóbica. Por isso, este hinário passional do singularíssimo Perfume Genius chega-nos em um excelente momento. Como ele próprio canta (e dança) em “On The Floor” (faixa 06): “eu ando e reclamo, eu rezo e espero/ Eu risquei o nome dele na página”. Ele não está só. Não estamos, aliás!