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“O Brasil é um sonho!” [ou o pesadelo de muitos!]

“O Brasil é um sonho!” [ou o pesadelo de muitos!]

No dia 20 de maio de 2020, a atriz mineira Grace Passô completou quarenta anos de idade. Nesta data, o país em que ela vive encontrava-se sob determinações conflitantes de isolamento social, no intuito de impedir a proliferação do CoronaVírus, que vem dizimando milhares de pessoas, diariamente, ao redor do mundo. O presidente do Brasil, entretanto, ignora a extrema letalidade da doença. Tachou-a de “gripezinha”, num primeiro momento, e, mesmo quando admite tardiamente a gravidade da mesma, insiste em defender, de maneira intransigente, a reabertura das atividades comerciais, visto que, em seu pérfido entendimento, as diretrizes econômicas são mais urgentes que a vida humana. Um pesadelo extremado para quem vive no país. Um terror real!

Por causa da quarentena sugerida, os aniversariantes não podem convidar os amigos para celebrar suas respectivas datas natalícias. As comemorações precisam obedecer a protocolos de intimidade, sem aglomeração de pessoas, por mais queridas que estas sejam. Grace Passô aproveitava a oportunidade para realizar um contundente curta-metragem: fôra contemplada num programa de produção artística patrocinado pelo Instituto Moreira Salles. Condição básica para a execução do projeto: a ausência de deslocamento externo e/ou de qualquer outra quebra das medidas de isolamento social.

Na tarde do dia 30 do mesmo mês e ano, começaram a abundar ciberneticamente os elogios intensificados ao curta-metragem “República” (2020), dirigido, escrito e protagonizado pela extraordinária atriz, com a colaboração técnica de Wilssa Esser, responsável pela fotografia, som e montagem do filme em pauta. Em pouco mais de quinze minutos, configura-se um dos melhores e mais impactantes filmes do ano!

No início do filme, a protagonista dorme. Quiçá interpretando a si mesma, Grace Passô é acordada pela vibração insistente de seu telefone celular. Ela atende. Logo descobrimos que sua mãe está do outro lado da linha. No início, ela comporta-se de maneira cética em relação a algo que está acontecendo no país. Ela olha alguém na janela, menciona um xamã e exclama, em tom eufórico, a frase aspeada que intitula esse texto: “o Brasil é um sonho!”. O que quer dizer isso? Na mais imediata das hipóteses que, se a alegação for verídica, em algum momento, a pessoa que sonha pode despertar e acabar com tudo…

Pausa dramática. De repente, a trama asfixiante que acompanhávamos converte-se num impressionante estudo metalingüístico. Grace Passô não apenas demonstra-se como uma das melhores e mais eloqüentes atrizes da atualidade como também revela-se uma diretora arguta, com domínio pleno das possibilidades cênicas e do subtexto político inerente àquilo que é mostrado ou escondido numa filmagem. O filme como um todo é o equilíbrio discursivo do que é elaborado artisticamente. Forma e conteúdo não se dissociam. Tudo é político, absolutamente tudo!

Quando ainda estávamos a nos recuperar da mudança genial de tom cênico, um terceiro ato começa a ser deslindado. E o que era definido como sonho passa a ser revestido de uma contrapartida ainda pior: os gritos de desespero e raiva frente à percepção de algo que pode nunca ter existido. Soa enigmático? Requer-se, obviamente, a audiência interessada ao filme para enfrentar adequadamente este paradoxo. Mas o enigma persistirá, enquanto componente constitutivo daquilo que compreendemos como realidade. Qual o discurso formativo que nos convém enquanto recurso existencial num ambiente de extrema polarização política? Algum xamã dá conta desta subestimação tão crassa de algo efetivamente tão complexo? Quem vive é quem sabe, quem sabe é quem sente…

No mesmo dia em que os espectadores inebriados elogiavam a grandiloqüência cinematográfica de “República”, protestos violentos ocorriam no território estadunidense. No dia 25 de maio de 2020, cinco dias após o aniversário de Grace Passô e cinco dias antes da disponibilidade virtual de seu curta-metragem, um homem negro de nome George Floyd, aos 46 anos de idade, foi asfixiado até a morte por um policial branco, que ignorou reiteradamente os clamores da vítima, que reclamava que não conseguia respirar. Prédios foram incendiados em represália, manifestos antirracistas eclodiram em diversos Estados norte-americanos. Enquanto isso, no Brasil, Jair Bolsonaro e seus asseclas ingeriam leite, de maneira ostensiva, exortando as benesses oportunistas do Agronegócio. Exegetas perceberam (acertadamente) neste inócuo ato alimentício de cariz espectaculoso incitações aderentes à “supremacia branca”, não por acaso condizente com a cor do referido líquido. O Brasil está um pesadelo!

O magnífico filme realizado por Grace Passô, conforme explicado anteriormente, faz parte de um hábil programa de ressignificação audiovisual da quarentena. Além dela, Karim Aïnouz, Leona Vingativa e outros artistas consagrados (inter)nacionalmente realizarão curtas-metragens com olhares distintos sobre um mesmo período histórico. Em “República”, diversos olhares são cotejados, malgrado a equipe reduzidíssima e a interpretação cambiante da atriz-diretora. A organicidade de seu roteiro transcende qualquer interpretação confortável da perspectiva onírica que ela repete em cena. A História, enquanto registro de múltiplas colonizações, é um pesadelo que assombrar-nos-á perpetuamente enquanto espécie… O racismo existe como tumor suprarreal. E mata de maneira impiedosa a cada instante!

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