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“Não escute os poços. Eles são traiçoeiros”: uma ou outra palavra sobre a Memória enquanto resistência…

“Não escute os poços. Eles são traiçoeiros”: uma ou outra palavra sobre a Memória enquanto resistência…

Em seu último filme, Federico Fellini [1920-1993], preferiu adaptar uma estória preexistente, ao invés de escrever um roteiro original. Não obstante servir-se de situações e personagens alheios como ponto de partida para suas divagações derradeiras, o cineasta italiano confirmou sua extrema autoralidade em “A Voz da Lua” (1990), não sendo por acaso que o seu sobrenome foi um dos primeiros a estabelecer-se dicionaristicamente como adjetivo. E, ainda que o resultado geral seja incoeso e bastante irregular, estamos diante de uma obra legitimamente felliniana.

Tal como ocorre no romance que serviu de inspiração – “O Poema dos Lunáticos”, publicado em 1987 por Ermanno Cavazzoni, também co-roteirista da adaptação cinematográfica –, “A Voz da Lua” é protagonizado por um homem recém-saído de um manicômio. Ivo Salvini (Roberto Benigni) insiste que consegue decodificar mensagens escondidas na água que é represada no fundo dos poços, e associa o satélite natural da Terra à sua mais renitente paixão platônica.

Encantado que é pela jovem Aldina (Nadia Ottaviani), Ivo perambula pelas ruas carregando um sapato prateado, como se empreendesse uma busca acidental por sua própria Cinderela. Ao perceber que este sapato serve perfeitamente nos pés de várias pretendentes femininas com que se depara, apregoa: “todas as mulheres do mundo são uma só”! Levando-se em consideração que o diretor concedeu à sua esposa Giulietta Masina [1921-1994] uma devoção irrestrita, tem-se aqui uma das inúmeras pistas semibiográficas que ele costuma destilar em seus filmes!

Alegando preencher seus roteiros com “lembranças inventadas”, Federico Fellini caracteriza-se por um estilo onírico, repleto de deliberações psicanalíticas, em que as recordações juvenis imiscuem-se nas obsessões de seus personagens adultos. O que mais chama a atenção neste seu filme temporão é a assunção de que o protagonista é louco: a existência de um lastro manicomial evidencia uma indisfarçada amargura do realizador em relação à contemporaneidade, entulhada de elementos que estandardizam as pessoas enquanto meros consumidores, enquanto títeres da publicidade onipresente. É mais o menos o que vinha sido percebido nos seus filmes imediatamente anteriores, “Ginger e Fred” (1986) e “Entrevista” (1987).

Em “A Voz da Lua”, os dissabores do cineasta contra a indecorosa disseminação televisiva e a conversão de todos os aspectos da vida cotidiana em recursos de vendabilidade tornam-se ainda mais explícitos, de modo que, malgrado o filme possuir diversos aspectos cômicos, ele converte-se num drama assaz melancólico, que termina com um esperançoso pedido de silêncio…

Mesmo que seja um exercício de hiperinterpretação cotejar o que é percebido neste percurso errático, típico das tramas fellinianas, a um discurso ostensivamente político, podemos enxergar aqui o mesmo aspecto descritivo que encontramos no título de um dos livros mais famosos de Vladimir Ilyich Ulianov [1870-1924]: afinal, percebemos que o imperialismo é, de fato, a fase superior do capitalismo. O que está longe de ser casual, visto que o filme foi realizado num ano em que a ‘perestroika’ já estava em curso, em que o muro que repartia ao meio a cidade de Berlim já havia sido derrubado e em que a cultura ‘pop’ estadunidense sufocava todo o planeta…

Naquela que talvez seja a mais bela seqüência do filme, o prefeito Gonella (Paolo Villagio) explica a Ivo onde reúnem-se os conspiradores que contribuem para a destruição do mundo como eles conheceram. Abre-se um celeiro e centenas de pessoas dançam freneticamente, ao som de “The Way You Make me Feel”, canção de Michael Jackson [1958-2009], proveniente de enormes caixas de som. Repentinamente, Gonella depara-se com um antigo amor e, por alguns instantes, dançam juntos a valsa “Danúbio Azul”, de Johann Strauss II [1825-1899]. Eis um átimo de sublimidade, em meio a um frenesi ‘rocker’ que, àquela altura, intimidava tanto o cineasta!

São diversas as críticas à hipertrofia de um estágio consumista de sociabilização, que, quando comparadas às obras prévias do cineasta, causam um avantajado estranhamento: o modo como os personagens surgem e desaparecem, repentinamente, é bastante similar; a direção de arte segue acachapante e artificiosa; a trilha musical de Nicola Piovani emula os tons inebriantes do compositor Nino Rota [1911-1979]; quase tudo confirma a colaboração insigne entre Federico Fellini e sua equipe. Porém, a atmosfera dominante no filme é a de cansaço: “é tão bom recordar que chega a ser melhor que viver”, diz o protagonista.

Analisando-se o filme hoje, num contexto muito diferente da era em que foi realizado, percebemos o quanto o diretor parecia clamar por algo que, por mais óbvio que estivesse, não foi bem compreendido durante o lançamento: os admiradores do realizador esperavam encontrar no filme a confirmação de seus apanágios autorais, mas depararam-se também com um enredo que tematiza metaforicamente as derrotas recorrentes da esquerda política. Pensemos na seqüência do tocador de oboé que, ao executar uma determinada música, faz com que fantasmas ressurjam. Ou no relato do marido abandonado pela esposa ninfômana que, subindo no telhado para exercer a sua fantasia de poder voar, depara-se com uma miríade de antenas.

A contemporaneidade, para Federico Fellini, era ainda mais cacofônica que as suas reconstituições idealizadas do passado: camelôs migrantes esgoelam-se nas praças, no afã por comercializar seus produtos contrabandeados, enquanto turistas japoneses fotografam à revelia tudo o que vêem. Até que a Lua é capturada (e amarrada) por alguns proletários ressentidos. Ouvimos uivos na banda sonora. E o que poderia ser um evento poético e/ou revolucionário redunda numa mera manchete sensacionalista de telejornal. Da mesma maneira que foi noticiada, é esquecida…

Diante de tudo isso, ousamos enxergar no filme uma defesa do “lunatismo” enquanto evasão necessária. Na conjuntura política atual, em que o Presidente do Brasil segue praticando a exortação dos ódios, insistindo em celebrar o aniversário do Golpe Militar de 1964 enquanto a média de mortes diárias (em decorrência do CoronaVírus) beira as três mil pessoas, o que esperar? Rememorar é também resistir – (re)imaginar, sobretudo! Quem viu uma das obras-primas do cineasta, “Amarcord” (1973), sentiu isso na alma: ousemos aprender com a História, portanto!

Wesley Pereira de Castro.

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