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“Liberem os homens e mulheres que existem dentro de vocês”: da importância de filmar a realidade e revelar as estrelas do dia a dia…

“Liberem os homens e mulheres que existem dentro de vocês”: da importância de filmar a realidade e revelar as estrelas do dia a dia…

A translação, para o Brasil, do programa “Big Brother”, concebido pela empresa holandesa Endemol, trouxe consigo graves consequências políticas, tanto em sentido geral quanto específico: no primeiro caso, porque confirma as teses apocalípticas dos teóricos da Escola de Frankfurt, no que tange aos efeitos da estandardização de programação e da manipulação de conteúdos midiáticos; no segundo, porque, ao invés de estar confinado à lógica do entretenimento, este programa altera consideravelmente as prerrogativas da esquerda partidária, quando está em exibição, no sentido de que as metonímias comportamentais das pessoas confinadas tornam-se pontos de partida para o agendamento de pautas reivindicativas. O que se converte nalgo ainda mais problemático quando se percebe o óbvio, ou seja, que as posturas das pessoas em pauta são induzidas por diretrizes orientadas pelos diretores de programação. Não há a naturalidade ansiada pelos ‘voyeurs’ autorizados pelos indutores de consumo, mas sim uma “novelização” da vida real, em que os piores clichês são introduzidos…

Na contramão desta vertente, percebemos a abundância na produção de documentários sobre pessoas comuns que, às vezes, apenas existem diante das câmeras, sem a necessidade de grandes eventos justificadores das escolhas de filmagem, e isso as torna completamente merecedoras de nossa atenção espectatorial e envergadura analítica. Nalguns aspectos, é o que encontramos em “Madeleine à Paris” (2024, de Liliane Mutti), que documenta o cotidiano de Roberto Chaves, um dançarino baiano que migrou para a França há mais de trinta anos e, lá, organizou a versão internacional de uma tradição do sincretismo religioso brasileiro, que é a lavagem das escadarias de igrejas católicas, por adeptos do candomblé. Orgulhoso de seus traços quase andróginos, Roberto conta histórias de sua vida, como a primeira paixão por uma mulher e que seu pai era obcecado por sexo. Mas o que está em destaque é a organização da lavagem supramencionada de uma igreja.

Inicialmente, Roberto e seus companheiros tentaram implementar a lavagem na Basílica de Sacré-Cœur, mas, por não receberem autorização do padre local, direcionaram o projeto para a Igreja de la Madeleine, situada nas proximidades da Praça da Concórdia, em Paris, o que abre espaço para avaliações de antropólogos e historiadores sobre questões referentes à condição feminina na perspectiva religiosa, no sentido de que esta personagem conjuga em si o estereótipo da puta, em contraposição ao da virgem, relacionado à mãe de Jesus Cristo. Entretanto, esta abordagem, que poderia ser muito relevante, é ostensivamente transversal no filme ora analisado, que parece não saber o que fazer com o seu carismático protagonista…

Proveniente da cidade baiana de Santo Amaro, Roberto Chaves — ou melhor, Robertinho, como é chamado pelos amigos e familiares — passou vários anos em turnê com a conhecida banda de lambada Kaoma. Numa das entrevistas, ele comemora o fato de nunca ter precisado se prostituir ou fazer faxinas na Europa, o que é muito comum entre os brasileiros que emigram para este continente. Devidamente estabelecido num grupo de dança, ele tornou-se responsável pela organização de um evento ecumênico (para além do sincretismo inicial), devidamente inserido no calendário parisiense, e é bem tratado pelas pessoas que encontra nas ruas, nas filmagens em que ele caminha utilizando os trajes exuberantes de um desfile em homenagem à cultura brasileira. Trata-se de alguém que não apenas tem muito a compartilhar com os espectadores, como também serve como um benfazejo exemplo de superação das dificuldades iniciais, visto que, além de sua origem pobre, ele fora bastante agredido por ser homossexual, na adolescência, por causa de seus trejeitos afeminados. Muito bom que ele tenha se convertido no protagonista de um filme sobre a sua vida, portanto.

Em pouco menos de uma hora e vinte minutos de duração, acompanhamos Roberto Chaves dançando na França, viajando provisoriamente para o Brasil, e conduzindo as reuniões de organização da lavagem da Madeleine. Imagens de arquivo são também apresentadas, além de um instante fascinante, em que o personagem real cantarola a letra de “Madalena”, de Gilberto Gil: “entra em beco, sai em beco/ Há um recurso, Madalena/ Entra em beco, sai em beco/ Há uma santa com seu nome”. Conforme reclamado acima, infelizmente o documentário subaproveita as pessoas e eventos apresentados, mas diz muito nas entrelinhas, como quando um pai-de-santo, ou babalorixá, amigo de Robertinho, diz que fala iorubá, mas nunca viajara para nenhum país africano: “já estive em Paris, mas nunca em África”. Isso diz muito sobre as configurações neoliberais da contemporaneidade, que se apropriam dos traços culturais alheios, convertendo-os em mercadorias, assimiladas às diretrizes de vendabilidade. Tal como acontece com as especificidades humanas no “Big Brother Brasil”, aliás. A partir disso, dispomo-nos a um clamor crítico, à guisa de resistência: prestigiemos os documentários exibidos nos cinemas!

Wesley Pereira de Castro.


Fonte da imagem: https://tesouracomponta.com/wp-content/uploads/2025/01/madeleine-em-paris-meio-amargo-2.jpg

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