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Interstício confessional – ou do abandono (aparente) quando ocorre o inevitável

Interstício confessional – ou do abandono (aparente) quando ocorre o inevitável

Um dos filmes com maior sucesso de público e crítica em 2019 foi uma produção hollywoodiana em que um comediante frustrado e com devastadores problemas mentais causa uma reação massiva inconformada por parte de cidadãos que se identificam com o abandono social e os maus tratos midiáticos a que ele é submetido. Nas entrelinhas do enredo, havia uma homenagem a um clássico oitentista scorseseano protagonizado pelo gênio cômico Joseph Levitch, internacionalmente conhecido como Jerry Lewis (1926-2017).

Do lado de fora das telas, no contexto brasileiro, alguns chamaram a atenção para uma similaridade transversal entre o desfecho intencionalmente lacunar do filme – para citar uma excelente interpretação de Slavoj Zizek sobre a obra – e as manifestações urbanas que, numa derivação estouvada, gestaram a hecatombe política que hoje conhecemos como bolsonarismo. Convém refletirmos – pessoalmente, inclusive – sobre alguns destes atravessamentos temáticos…

Nos telejornais e mídias sociais, é comum depararmo-nos com depoimentos ridículos do atual presidente brasileiro e de seus asseclas ministeriais: Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, confessou ter visto Jesus Cristo numa goiabeira, num momento traumático de sua infância, e defende paralegislativamente o rigor indumentário para crianças [uma nova era está chegando no Brasil: meninos vestem azul e meninas vestem rosa!”, apregoava ela, num excerto videográfico vexatório amplamente difundido]; Abraham Wintraub, ministro da Educação, comumente surge realizando aparições piadistas e/ou anedóticas em meio aos pronunciamentos oficiais; e Jorge Seif Júnior, secretário de Pesca do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento causou revolta ao alegar que “o peixe é um bicho inteligente: quando vê óleo, foge!”. Estes são apenas alguns exemplos do quão tragicômico é o (des)governo do presidente Jair Messias Bolsonaro.

Se, por um lado, tais declarações chamam a atenção pelo caráter ridículo e (involuntariamente?) chistoso, por outro, elas preocupam-nos pelo que escamoteiam em seu célere agendamento noticioso: afinal, ao despejar tamanha carga de estultices, a corja bolsonarista está em contínua evidência midiática, torna-se assunto recorrente em qualquer roda de conversa. Eles utilizam-se do jargão popularesco “falem mal, mas falem de mim” como estratégia de permanência no interesse público, sendo essa uma das razões que catapultaram a adesão eleitoral do presidente supracitado. O humor politicamente incorreto – elevado à categoria de pauta indireta de campanha discursiva – surge como ferramenta de sustentação ideológica: ao rir-se, legitima-se. A perfídia insurge-se como tônica dominante do Poder Executivo brasileiro hodierno, em sua incitação contumaz ao ódio…

É nesta conjuntura que torna-se um ato de pura resistência subversiva voltarmo-nos para a genialidade de Jerry Lewis: conhecido por seu mau humor fora das telas e pelos rompantes atrozes de depressão, ele era um verdadeiro mestre da ‘mise-en-scène’ diante das câmeras, além de criar um tipo muito peculiar de interpretação cômica que ressignificava a noção dostoievskiana de idiotia. Os protagonistas vivificados por Jerry Lewis geralmente são paspalhões bem-intencionados e sumamente caricaturais, que, não obstante a tendência inelutável ao desastre, contribuíam para o melhoramento psicanalítico de quem o circundava. O que testemunhamos em “O Otário” (1964), escrito e dirigido por ele mesmo, é a prova viva disso!

No início da trama, um famoso comediante morre num acidente aéreo e a sua equipe de assessores cogita a possibilidade de escolher um sucessor para a sua fama. Ao depararem-se com o atrapalhado mensageiro de hotel Stanley Belt (vivido por Jerry Lewis), vêem nele a garantia de sucesso imediato. Treinam-no com afinco e ensinam-lhe piadas decoradas, mas ele é assaz estabanado e confunde tudo na hora de apresentar-se no palco. Termina congratulado justamente por causa disso, além de conquistar os audientes em razão de sua espontaneidade: recusa-se a mentir e/ou a agir desonestamente. Permanece autêntico em sua escalada meteórica para a popularidade, desvendada metalinguisticamente em mais de um momento. Jerry Lewis falava sobre si mesmo, afinal!

Num dos instantes mais geniais do filme, Stanley é levado à residência de um professor de impostação vocal, também conhecido por sua coleção caríssima de antiguidades. Um despejo inusitado e brilhante de ‘gags’ ocorre neste local, antes do inevitável desastre [vide fotograma que ilustra esta publicação]. E, conforme era esperado, Stanley apaixona-se. Mas, no mundo das celebridades, é tudo sobremaneira efêmero, e sua ingenuidade intimida os magnatas da comédia. No desfecho, ele será obrigado a improvisar. Ou melhor, o fará naturalmente. Não há necessariamente um clímax narrativo, um auge a ser alcançado: tudo ocorre num tempo estendido de humor, mui característico do ator, que é também um ‘auteur’ cinematográfico. O riso não é (apenas) rasteiro, mas reflexivo, autocrítico, beirando o melodrama. Obriga o espectador a olhar para si mesmo e refletir acerca do que ri, e por que ri. É o que falta ao (des)governo brasileiro atual e a seus simpatizantes…

Em tom confessional, adicionamos: a quem estiver sentindo-se depreciativamente triste por conta do que ocorre no cenário político mundial – com a ascensão da extrema-direita em diversos países – assistir a este filme lewisiano é deveras balsâmico. Testemunhar os levantes revoltosos em diversos países da América Latina também. Mas este tema possui outra envergadura genérica, em tom quase épico. Voltaremos a isso: quedaremos firmes. Resistiremos!

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