Depois de abordar os estertores do Absolutismo francês em mais de uma oportunidade, o cineasta catalão Albert Serra estendeu a instalação visual “Personalien” e converteu-a num filme incomodamente brilhante. Este sintetiza de maneira ímpar os sentimentos aflitivos que tomam de assalto as pessoas esclarecidas e privilegiadas que são obrigadas a lidar com as conseqüências do confinamento requerido para dirimir a contaminação causada pelo CoronaVírus. No longa-metragem “Liberté”, reencontramos os mesmos personagens – antes, anônimos; agora, dotados de títulos honoríficos – num afã gozoso para sentirem prazer (ou, ao menos, libertarem-se do desprazer extremo)…
Ao longo dos 132 minutos de duração, são inúmeras as práticas sexuais e sadomasoquistas apresentadas, com o destaque para a inalcançabilidade do gozo: por mais explícitas que sejam as conjunções carnais, não há orgasmo ou ejaculação visível. É um filme que serve-se da abolição de fronteiras pornográficas para demonstrar o quão político é o erotismo. A trama passa-se no século XVIII, mas translada sentimentos hodiernos. Afinal, como bem diz o diretor, “o presente está sempre presente”. É assim que a História se faz!
Com o intento óbvio, mas não redundante ou simplista, de chamar a atenção para os desmazelos da atualidade, a minuciosa reconstituição de época de “Liberté” encontra eco preciso em atividades contemporâneas reprováveis, como as hipócritas manifestações conservadoras do presidente brasileiro Jair Messias Bolsonaro. No Carnaval de 2019, ele reproduziu a filmagem de um casal homossexual fazendo sexo, a fim de demonstrar uma reprimenda moralista à festividade. Para piorar, servindo-se do ‘site’ Twitter – muito mais utilizado por ele que o Diário Oficial da União – interrogou-se publicamente acerca do que era ‘golden shower’ [em tradução literal, “chuva dourada”], parafilia que corresponde ao ato de urinar em alguém durante o sexo. Não por acaso, esta prática é abundante em “Liberté”…
À medida que o filme avança, os parcos diálogos tornam-se ainda mais rarefeitos e são substituídos por gemidos de prazer, dor ou de ambos, simultaneamente. Em dado momento, um aristocrata pederasta, incapaz de manter a ereção, pede para ser chicoteado, a fim de poder sentir algo, quiçá ejacular. Desmaia antes, tomado pela exaustão. A suruba generalizada que se expande pela floresta que serve de cenário ao filme não engendra o gozo. Este é concedido ao espectador, que, no limite entre o incômodo e a excitação, experimentará um sentido crítico para a liberdade ironicamente emulada no título do filme, vista como um princípio interditado pela censura e pelas convenções repressoras de classe.
Não obstante possuir sequências esteticamente deslumbrantes de coito e masturbação, a lubricidade vivenciada pelos personagens de “Liberté” confirma as alegações foucaultianas sobre o sexo enquanto imposição de poder. A pretensa mutualidade nas transas é substituída pela clara demarcação do poderio social de cada um dos personagens. Não se sabe exatamente qual o ano em pauta, mas, como reconhece-se claramente as características do século XVIII, sabe-se que uma era está prestes a acabar. Os nobres estão em fuga, escondem-se na floresta, onde podem sentir-se provisoriamente livres para trazerem à tona os seus desejos mais obscuros e incontidos. Entretanto, entre a idealização de um desejo e a sua consecução física, há muito em jogo: o estupro não é suficiente enquanto estratégia de manutenção honorífica. A impotência insurge-se, obriga as pessoas a movimentarem-se. E é a esse movimento que chamamos de História!
Outra correlação possível entre aquilo que ocorre no filme e o que está sendo vivenciado no Brasil de 2020 está na constatação da História como também associada à pouca movimentação pública ou à exortação governamental do obscurantismo. A quarentena providencial – desrespeitada discursivamente pelo execrável presidente eleito – é comumente acompanhada por reflexões psicanalíticas sobre a necessidade de não cobrar-se tanto, em termos de (im)produtividade. Está-se numa era de repouso e sobrevivência, e não de bravata ou destruição generalizada, como pretende a extrema-direita brasileira!
O elenco de ‘Liberté”, capitaneado pelo muso viscontiano Helmut Berger, empresta seus corpos a personagens que agem como avantesmas caprichosos, que esforçam-se para obterem o vigor genital, facilmente alcançado pelas classes sociais menos favorecidas. É o que explica o título deste artigo, inclusive, que surge dialogisticamente na observação de um entrelaçamento lésbico tão deslumbrante quanto sedutor. Porém interditado para quem deixou-se aleijar pela malevolência do poder…
No clímax gráfico do filme, um anão com decapitação braçal visível e abundantemente sanguinolenta tem seu corpo despido e molhado pela urina de mais de um duque. Os açoitamentos acontecem a pedido dos suplicantes nobiliárquicos, que, em dado momento, consideram-se tão abandonados quanto Jesus Cristo esteve no momento da crucifixão. Depois de uma tempestade no interior da mata, a vacuidade do cenário arbóreo é preenchida por música e iluminação artificial. É um filme, afinal. A vida!




2 respostas
Não vi, ainda, o filme. No entanto, admiro a capacidade que Weslyey de Castro tem em descrever em palavras algumas das facetas mais grotescas do ser humano.
Afinal, somos seres frágeis que buscamos incessantemente algo que nos projecte para uma dimensão etérea que reduza o sofrimento de viver, sem perceber por que razão.
Essa demanda, com infinitos caminhos!…
Uma demanda perene, de fato. Sigo à mercê da mesma também e, cumprindo a obrigatoriedade da autocrítica, não raro direciono estas descrições grotescas para mim mesmo. Procede, afinal de contas. Foi como cheguei ao filme, aliás: através de uma projeção oblíqua. Apesar de não pertencer à mesma classe social dos personagens, enfrento o mesmo desamparo proveniente de uma impotência generalizada. Para quem sofre, por dentro,o título do filme é menos irônico que teleológico, em desejo: por favor, veja este filme. É brilhante! (WPC>)