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A vontade de suicídio às vezes é tédio inassumido: ouçamos música, portanto!

A vontade de suicídio às vezes é tédio inassumido: ouçamos música, portanto!

Os meses passam-se e a necessidade de isolamento social segue cada vez mais imprescindível, dado o exorbitante crescimento dos casos de COVID-19 no Brasil: os mortos passaram de cinqüenta mil e as incongruências do Governo Federal na lida com a doença ultrapassam o caráter criminoso. Cabe a nós, cidadãos comuns, a urgência na reeducação interativa: ainda não é momento de sair de casa, exceto para quem é obrigado a cumprir exigências empregatícias permeadas pela injustiça essencial do Capitalismo. Enfrentemos!

Por motivos óbvios, o confinamento prolongado acentua as mazelas psicológicas de quem não consegue suportar a solidão (e a sua variante positiva, a solitude) ou de quem é vítima de maus tratos no ambiente doméstico. A situação torna-se tão mais delicada quanto são os canais instaurados de comunicação emergencial durante a vigência desta pandemia: interagir com outrem é prática sobrevivencial, ainda que sob a inevitabilidade das restrições midiáticas!

Infelizmente, nem todos concordam com esta premência: há quem insista que a doença é uma “gripezinha” e ignora as suas conseqüências progressivamente letais, há quem duvide dos números alarmantes de infectados divulgados diuturnamente, há quem importe-se pouco com a vida alheia… E há quem sofre tanto que não consegue sequer suplicar ajuda. Nesse contexto, o lançamento de um álbum tão providencial quanto “Só – Canções da Quarentena”, da cantora e compositora gaúcha Adriana Calcanhotto, demonstra-se assaz profilático.

Composto por apenas nove faixas, bastante distintas porém interligadas entre si, este álbum reflete bem o espírito de resistência íntima em meio ao confinamento: foi gravado em menos de dois meses e composto de maneira quase automática. Segundo entrevistas, a cantora já acordava inspirada para escrever as canções, incluindo-as no álbum à maneira que foram surgindo. E ela merece aplausos por isso: o disco é ótimo!

Na faixa de abertura, “Ninguém na Rua” (01), ela serve-se de inspirações do ritmo ‘funk’ para reagir ao que ainda era novidade enquanto prevenção, segundo o modelo adotado nos países europeus. Entretanto, o que interessa à cantora, para quem já conhece a sua augusta trajetória, é o romantismo, magistralmente transmitido nos versos que se seguem: “Céu preto inteiro antes da uma/ Ninguém na rua, nem mesmo à luz da lua/ Eu e você no pensamento/ Eu e você no batidão do peito/ Sua beleza passando, passando na cabeça/ Como as estrelas passando/ Ainda que amanheça”… Que linda abertura!

A faixa seguinte, “Era Só” (02), possui a sua cadência caracteristicamente mais lenta. A solidão derivada do confinamento é evidenciada nos verbos sempre conjugados no passado, o que realça mais uma vez a tônica romântica da artista: Era só, era só/ Eu estar com você, servia
Era só, era só/ Eu amava por nós, sozinha”… Belíssima canção!

Na terceira faixa, “Eu Vi Você Sambar”, ela mantém a verbalidade pretérita, de repente invadida por um desejo de futuro: “E, agora, eu vivo sonhando/ Eu vivo querendo te ver outra vez/ E quem sabe ser feliz/ Quem sabe ser feliz/ Quem sabe?”. Este refrão transmite o que muitos de nós estamos sentindo neste período de confinamento. Mas ainda não é hora de sairmos… Suportemos um pouco mais, conforme ela própria indica em “O que Temos” (04), que escancara a descrição quarentenária: “nas sacadas, nos sobrados/ Nós estamos amontoados e sós/ O que temos são janelas/ O que temos são janelas”. E estas janelas são digitais também, palavra esta que rima com “panela”, a fim de validar a esperta utilização do som de panelos anti-governamentais no desfecho da canção. Uau!

A faixa seguinte, “Sol Quadrado” (05) – a menor do disco, com apenas um minuto e quarenta e quatro segundos de duração – é um sambinha intersticial, direcionado a quem segue na contramão das recomendações preventivas supramencionada: “O que jogas pro alto/ Volta para o teu telhado/ O mundo deu voltas/ E agora até o gado ‘tá baratinado/ Levanta que agora é chegado o teu dia/ Levanta que chegou a hora e eu quero ver/ Tu voltares pra casa com tudo o que tens plantado/ Levanta para ver o sol quadrado”. Simples e direta: brilhante!

Na sexta faixa, “Tive Notícias”, retorna o tom merencório que associa-se tão bem à voz chorosa da cantora. Na letra, a inevitável melancolia hodierna: “O coração de quarentena/ Na quaresma, nas trevas/ E tive notícias suas/ Num mundo de notícias”. É uma dor compartilhada por tantas e tantas pessoas hoje em dia, sendo essa talvez a canção mais afetiva do álbum, que retorna ao tom nostálgico em “Lembrando da Estrada” (07), canção que inclui os distúrbios de sono em sua plangente letra: “não se dorme, não se vê a luz do dia/ Eu tô lembrando do momento de levantar acampamento/ E deixar para trás o que tiver de deixar”…

A oitava faixa, “Bunda Lê Lê”, também conhecida como “Funk da Quarentena”, é a mais badalada do álbum, novamente utilizando a percussividade somática do ‘funk’, mas sob outra perspectiva: ela brinca com a sexualização intensificada daquele ritmo, redefinindo-a num prisma bibliotecário, aproveitando a afinidade da cantora com a Literatura. À repetida pergunta “o que se faz na quarentena?”, ela responde: “senta a bunda e estuda/ lê, lê, lê”. Conselhos adequadíssimos à conjuntura progressivamente acéfala da política atual!

Por fim, um hino pessoal à cidade lusitana de Coimbra, onde a cantora atua como professora. Em “Corre o Munda” (09), ela proclama, de maneira sumamente poética: “Não permita Deus que eu morra sem voltar/ A flanar-te sob o céu cinza/ A encher-me os olhos como o rio raso que te serpenteia/ Por onde vagueia tua compositora sem eira nem beira”. Nas agruras opressivas da angústia, ouvir um disco tão coeso como este liberta-nos do tédio proto-suicida. Fica aqui o compartilhamento de uma experiência pessoal que salvou a minha vida. Que sirva para mais alguém…Mesmo provisoriamente confinado, o mundo é bom!

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