Quando realizou o apavorante curta-metragem “Amor Só de Mãe” (2003), o cineasta Dennison Ramalho logo firmou-se como um os expoentes mais promissores do cinema de gênero brasileiro. Obcecado pela estrutura do horror – levado às suas últimas conseqüências sociais – ele denuncia a violência policial de forma simultaneamente brilhante e tenebrosa em “Ninjas” (2010). Quando a sua estréia em longa-metragem foi anunciada com a produção de “Morto Não Fala” (2018), depois de participações notáveis em seriados de TV, as expectativas foram exacerbadas: confirmar-se-ia, assim, a grandiosidade e relevância do estilo autoral de Dennison Ramalho.
Tendo como locação uma região mui violenta da cidade de São Paulo, a trama de “Morto Não Fala” é centrada na figura de Stênio (Daniel de Oliveira), funcionário plantonista de um necrotério que possui a habilidade insuspeita de ouvir os derradeiros lamentos e pedidos das pessoas recém-falecidas que higieniza antes das autópsias. Dentre os cadáveres que escuta, ouve relatos sobre brigas de torcidas de futebol, rixas decorrentes do tráfico de drogas e fofocas sobre a sua própria vizinhança. E, como tal, nalgum momento reagirá às informações que são-lhe confidenciadas…
Depois de passar as madrugadas confinado num ambiente lúgubre, Stênio é comumente hostilizado por sua esposa Odete (Fabíula Nascimento) quando retorna para casa, pela manhã, visto que ela demonstra-se fortemente incomodada com o odor mortífero que ele exala. Ela grita que sente nojo dele, e arengas típicas da classe social a que pertencem ocorrem: eles são pobres, o relacionamento conjugal é perceptivelmente falido e os diálogos com os mortos passam a afetar negativamente o comportamento cotidiano de Stênio. E estamos apenas no início do filme…
Adotando, de maneira perspicaz, comentários analíticos sobre a conjuntura social circundante, as convenções de terror a que o diretor submete-se não resvalam em clichês gratuitos: a onipresença oportunista de igrejas neopentecostais, os conflitos violentos entre traficantes e os adultérios fortuitos justificam os sustos contínuos a que os espectadores são submetidos durante a sessão. Não obstante a intromissão sobrenatural, a realidade em si é apavorante o suficiente: nas ruas, pode-se ser assassinado a qualquer momento, pelos motivos mais irrelevantes. E não é por acaso que esta ambientação ecoa politicamente na ascensão de extrema-direita no Brasil. O desgoverno atual é reflexo direto da retroalimentação de um discurso de ódio que objetiva menos a resolução de problemas que a execução pública de bodes expiatórios convenientes aos interesses egóicos de quem está no poder. Aquilo que apavora no filme é apenas um sintoma do que oprime-nos na realidade!
A despeito de não atender por completo às sumas expectativas depositadas sobre ele, Dennison Ramalho confirma a sua excelência directiva em “Morto Não Fala”: o ritmo do filme é sufocante, os personagens são imersos numa atmosfera de terror contínuo e os componentes técnicos (trilha musical, maquiagem, efeitos visuais) são primorosos. Mas algo definha no roteiro, infelizmente: as relações humanas merecedoras de atenção são obnubiladas pelas ameaças fantasmáticas. Uma historieta de vingança assume o primeiro plano narrativo, sem que sejam desperdiçados os apanágios críticos compartilhados por filmes brasileiros contemporâneos que servem-se do gênero terror como expoentes das mazelas advindas do bolsonarismo. O cotejo com o ótimo “O Clube dos Canibais” (2018, de Guto Parente) que o diga: a diferença é que, neste último, põe-se em voga os anseios sádicos e letais da classe economicamente dominante, que oprime pessoas como Stênio a partir da intensa exploração empregatícia. Ou seja, em “Morto Não Fala”, um dos acessórios vilanescos é justamente o esmagamento da personalidade humana via ambiente de trabalho.
Se, por um lado, Stênio é impedido de descansar por conta da incompreensão de sua esposa quanto às agruras tortuosas de sua profissão, por outro, isso não é exclusividade sua: seus companheiros de trabalho são igualmente frustrados e/ou extenuados. Tornam-se indiferentes ao sofrimento humano e não raro recorrem ao entorpecimento toxicológico. Numa seqüência que poderia ser melhor explorada, acompanhamos a aflição de Stênio quando ouve simultaneamente aos gritos de vários falecidos num desabamento de terra, cujos cadáveres são entulhados na sala exígua do necrotério, por falta de espaço. O que mais impressiona em “Morto Não Fala” são as entrelinhas de sua encenação!
Repete-se, portanto: ainda que o filme soçobre um pouco por conta dos rumos equivocados de seu roteiro – vide a incoesão de algumas seqüências de impacto, como a festa antecipada de aniversário do filho de Stênio – ele revela bastante sobre o quão deletéria é a situação brasileira atual, numa perspectiva que financia a continuidade da exploração classista. O desfecho em aberto de “Morto Não Fala” torna patente o seu projeto de continuidade via seriado televisivo vindouro, em que focar-se-á na redenção moral ansiada pelo protagonista. Mas o que é essencial aqui permanece explícito no diálogo entre este e vários filmes hodiernos congêneres: a reinstauração do terror enquanto gênero prolífico no cinema brasileiro deste século XXI é um sinal de que algo vai muito mal no país. E, lamentavelmente, por enquanto, a tendência é piorar…