Nas primeiras cenas de “Dois Papas” (2019, de Fernando Meirelles), impregnadas de um benfazejo pendor jornalístico, um ótimo filme é prenunciado: segundo estas amostras iniciais, depararíamo-nos enredisticamente com uma obra que desvelaria os motes políticos das escolhas papais, demonstrando interesses secundários para a administração do Vaticano, muito além das vocações religiosas originais. Entretanto, à medida que o filme avança, o diretor esvazia o filme dos interesses antecipados e faz com que a trama chafurde numa reflexão forçosa sobre a culpa anuente, num prisma esquerdista com viés prioritariamente contratual. Ou seja: o embate dialogístico entre os dois papas do título descamba para uma mera disputa dicotômica, metonimizada pela partida de futebol entre Argentina X Alemanha que é assistida pelos personagens durante os créditos finais…
Protagonizado de maneira luxuosa por Jonathan Pryce e Anthony Hopkins, ambos irrepreensíveis, “Dois Papas” reconstitui alguns encontros pontuais entre o papa Bento XVI e o então cardeal Jorge Bergoglio, antes de o primeiro renunciar e de, por extensão, o segundo ser nomeado papa Francisco I. O propósito inicial destes encontros é transmitir a intenção do cardeal argentino em aposentar-se, mas o encadeamento de fatos polêmicos que circundavam a administração do papa Bento XVI impediu a consecução deste anseio. Escândalos envolvendo corrução bancária e obnubilação pedofílica adiantaram a renúncia do teutônico Joseph Ratzinger, tachado de “nazista” por seus detratores. Nos interstícios das conversas entre os dois líderes religiosos, um arremedo de competição esportiva entre idéias conservadoras e liberais…
No primeiro conclave reproduzido no filme, o favoritismo de Joseph Ratzinger ao cargo é considerado suspeitoso por desejar avidamente o cargo, ao passo que, numa citação do filósofo Platão, a primeira qualidade em defesa de um verdadeiro líder é não desejar sê-lo. Jorge Bergoglio foi o segundo mais votado e instaurou a possibilidade de, pela primeira vez, haver um papa latino-americano, o que afinal ocorreu a partir de 2013. Porém, no roteiro esquemático do dramaturgo Anthony McCarten, não há sutilezas: ambos os religiosos, de posições frontalmente opostas, são apresentados de maneira quase caricata. Muitíssimo bem interpretados – e fisicamente assemelhados aos religiosos reais – mas limitados composicionalmente. De modo que, em seu terço final, o filme apresenta uma queda evidente de ritmo, o que é piorado pelo trabalho frouxo na montagem de Fernando Stutz, que serve-se de ‘flashbacks’ duvidosos da juventude de Jorge Bergoglio.
Se, em termos biográficos, são conhecidas as filiações adolescentes de Joseph Ratzinger à ‘Hitlerjugend’ [‘Juventude Hitlerista’] – não abordadas pelo roteiro – o filme apresenta-nos a um Jorge Bergoglio em intensa crise de consciência, jamais tendo recuperado-se de uma conivência coercitiva em relação à ditadura militar argentina, na década de 1970. Bento XVI alega que, “numa ditadura, perde-se o livre-arbítrio”, mas isso não consola o religioso portenho. Ou seja: segundo a tônica roteirística, a guinada parassocialista do papa Francisco I deve-se menos a uma interpretação basilar do franciscanismo que a conflitos internos de uma figura pública atormentada pela culpa. Para piorar, a insistência do filme em mostrá-lo aderindo às manifestações do futebol e do tango – “como todo argentino” –, ao invés de reforçar o seu positivo apelo por imersão popular, demonstra uma visão rasteira do ser humano convertido em líder máximo do Catolicismo mundial. É um filme sem nuanças, portanto. Maniqueísta, inclusive.
À medida que os diálogos progridem, as ótimas interpretações passam a ser tolhidas pelas táticas publicitárias da direção meirellesiana, que invoca as suas aptidões profissionais exordiais: a anulação do som no instante em que Bento XVI confessa saber em detalhes a trajetória de abusos sexuais de um determinado padre revela a covardia do roteiro ao abordar aquele que poderia (e deveria) ser o grande tema desta produção Netflix, as negociatas institucionais de uma religião em decadência quantitativa de seguidores. Num momento inspirado, Joseph Ratzinger menciona que “a igreja que casa-se com as idéias de uma era tende a ser viúva na era seguinte”, exigindo posturas definidas de Jorge Bergoglio quanto a questões polêmicas como o aborto e as uniões homoafetivas. O argentino prefere criticar o segregacionismo inequívoco dos muros, defendidos por seu interlocutor alemão. E, assim, mesmo interditado pulsionalmente, o filme brilha, provoca reações. É muito bom, portanto!
A despeito de seu reducionismo tramático, “Dois Papas” chama a atenção pela direção de arte acachapante, pelas ainda insuficientemente elogiadas interpretações dos atores centrais e, admitamos, pela direção sagaz, que torna dinâmico um filme composto primordialmente por diálogos. Mas o caráter ostensivo de contratualidade percebido na montagem e nos fatos compartilhados sobre a vida pregressa de Jorge Bergoglio denotam uma intenção escusa no roteiro, indigna das expectativas geradas por “Dois Papas”. Mas vale pela abertura discursiva…




Uma resposta
Meu filme indicado aí Oscar junto com o coringa. O diretor e o roteirista fizeram um excelente filme sobre a compreensão e as diferenças atuais. Nada de esquerda ou direita reduzidas pela crítica.