EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

A propósito de um ou mais curtas-metragens: um ‘corpus’ filmográfico que desnuda o Brasil atual!

A propósito de um ou mais curtas-metragens: um ‘corpus’ filmográfico que desnuda o Brasil atual!

Aloysio Raulino (1947-2013) é um dos mais conceituados diretores de fotografia do cinema brasileiro. Primeiro presidente da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD), fundada em 1973, ele recebeu um merecidíssimo prêmio de Melhor Fotografia, no Festival de Cinema de Gramado, pelo audacioso “Serras da Desordem” (2006, Andrea Tonacci). Mas também possui uma fundamentada carreira no cinema documental de curta-metragem, em relação à qual convém traçarmos alguns dolorosos paralelos com a situação atual do Brasil…

Passados os cem primeiros dias do (des)governo do presidente Jair Bolsonaro, aberrações tonitruantes são evidenciadas em todas as áreas ministeriais, marcadas por demissões, falta de propósitos e retrocessos discursivos em níveis abissais. Não por acaso, os efeitos colaterais – repassados à população – destas características (des)governamentais são tematizados nos melhores curtas-metragens de Aloysio Raulino. Tomemos como ponto de partida o filme genial que ele realizou ao lado da produtora Luna Alkalay, “Lacrimosa” (1970). Tema propagandeado: a inauguração da Marginal Tietê. Tema que não é escondido: a pauperização alarmante de quem vive às margens desta imponente construção.

Ao longo dos doze minutos de produção desta joia pouco conhecida da cinematografia brasileira, a câmera de Aloysio Raulino faz um percurso retilíneo, sem cortes, na rodovia em pauta. Favelas são focalizadas, exibindo um ambiente de extrema precariedade socioeconômica. Um intertítulo interrompe o ‘travelling’ e justifica o título do filme, que remete a uma missa fúnebre composta por Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Fede bastante no lugar e, mais uma vez, isto é anunciado via intertítulo, antes de vermos crianças que brincam em meio aos entulhos. Uma dessas crianças aparece utilizando uma máscara de proteção anti-gases. Ironia dolorosa. É um filme sobre uma miséria que permanecia invisível aos projetos de urbanização de outrora e que é intencionalmente obnubilada nos discursos de ovação ditatorial, lamentavelmente em voga no período tétrico que vivemos politicamente, nos dias atuais. O fedor é tão intragável hoje quanto o era há cinquenta anos…

Estendendo-se a comparação entre o escamoteamento oportunista da miserabilidade popular detectada no período ditatorial e as odes à violência militar efetivadas pelo atual presidente brasileiro, encontraremos noutros curtas-metragens de Aloysio Raulino mais algumas chaves relevantes: em “Jardim Nova Bahia” (1971), um migrante nordestino relata as suas desventuras (des)empregatícias na cidade de São Paulo. Empossando momentaneamente a câmera do cineasta, filma uma mendiga clamando por alguma moeda, numa seqüência em preto e branco que desemboca num pretenso lazer praiano. Tal apelo litorâneo é recorrente na obra do cineasta, celebrado pelo curta-metragem “Porto de Santos” (1978), em que a sensualidade e a alegria dos estivadores sobressaem-se em relação às exigências sindicais não atendidas via greve. Temos muito a analisar ainda…

Prossigamos: no impactante “Teremos Infância” (1971), um morador de rua relata o compêndio de violenta exploração física que sofreu quando era criança. Detalha abusos de vários tipos, até que seu discurso é interrompido e passamos a acompanhar uma dupla de garotos, escolhida pelo diretor para metonimizar o discurso de perda da inocência frente a pobreza, contido na fala do depoente. Pede-se que as crianças falem algo para a câmera. Eles não sabem o que dizer. Observam, apenas. Mostram-se para nós. E, hoje em dia, o Ministério da Educação promulga absurdos, no afã por redefinir, mediante engodo, os paradigmas históricos do País. O que foi um escancarado golpe de estado pode ser louvado como “revolução” daqui por diante. A censura volta à tona em sua faceta mais escabrosa: através da pletora de falsas mensagens via abundância tecnológica. Teremos infância daqui por diante?!

Por fim, entre diversas outras jóias de questionamento ideológico via interpelação popular, deparamo-nos com “Tarumã” (1975). Em pouco mais de 13 minutos de projeção, acompanhamos o diretor calar-se diante da eloqüência oblíqua de uma agricultura semialfabetizada que descreve as terríveis condições de submissão imobiliária rural que enfrenta, ao passo em que adianta que não poderá manter seus filhos na escola. Motivo: não apenas não tem dinheiro para comprar os materiais escolares e uniformes como não acredita que a educação formal seja suficiente para criar homens honestos. O seu marido quase não sabe ler, mas corresponde a um ideal mais que necessário de inteligência instrumental para ela.

Em contrapartida, como apanágio de estudantes tradicionais, reclama do linguajar chulo e altissonantes dos alunos noturnos de uma escola localizada próximo à sua casa. Para quem leu o clássico livro “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire (1921-1997), sabemos o que está sendo deslindado em sua fala indignada: a fúria contra a inaplicabilidade contextual do que foi definido pelo autor como “educação bancária”. É uma versão piorada disso que periga ser implantada nas instituições de ensino pela sanha “despolitizante” do presidente atual. Estudemos organicamente para que isso não se reinstale vexatoriamente, tal qual ocorreu entre 1964 e 1985: os filmes de Aloysio Raulino precisam ser vistos e debatidos publicamente!

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]