EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

“A motivação primária de qualquer regime é a autopreservação”: ou de quando um filme demonstra que ‘insanidade’ e ‘realidade’ não possuem o mesmo sufixo por coincidência!

“A motivação primária de qualquer regime é a autopreservação”: ou de quando um filme demonstra que ‘insanidade’ e ‘realidade’ não possuem o mesmo sufixo por coincidência!

Apesar de não ter figurado na lista definitiva de melhores filmes do ano da revista Cahiers du Cinéma, “Casa de Dinamite” (2025, de Kathryn Bigelow) foi mencionado nas listas individuais de vários articulistas, confirmando o apreço que os críticos sentem por sua hábil realizadora, responsável por um clássico de ação noventista [“Caçadores de Emoção” (1991)], por um ‘cult movie’ absoluto [“Estranhos Prazeres” (1995)] e pelo primeiro Oscar de Melhor Direção concedido a uma mulher [pelo excelente “Guerra ao Terror” (2008)]. Trata-se de uma diretora que respeita as convenções de gêneros clássicos hollywoodianos, na superfície, mas que, no desenvolvimento dos roteiros que escolhe, insere demonstrações de uma crise de valores capitalistas, representada pela falibilidade dos relacionamentos interpessoais entre os personagens.

Ostensivamente incompreendido pelo público, por causa do desfecho em aberto, este mais recente filme da diretora foi produzido/distribuído pelo serviço de ‘streaming’ Netflix e, numa olhadela mui superficial, parece legitimar os tropos cinematográficos que exaltam o papel desempenhado pelos militares norte-americanos como “salvadores do mundo”, havendo diversos planos que exibem a bandeira estadunidense. O enredo, entretanto, parte de uma contradição básica, associada ao ótimo título do filme, mencionado pelo personagem do Presidente dos Estados Unidos da América (Idris Elba), identificado pelo acrônimo POTUS. Segundo o presidente, ele teria ouvido esta expressão num ‘podcast’, e ela diz respeito à fragilidade proposital da nação que ele governa que, “ao erigir as suas paredes com explosivos”, instaurou a própria letalidade.

No filme, uma mesma situação é representada sob vários ângulos, em círculos narrativos concêntricos que expandem as reações de diversos profissionais a um fato desencadeador de tensão, que dura dez minutos, antes do clímax que ocorre fora da tela — insuportável em seu caráter amplamente destrutivo: soldados de uma base militar no Alasca descobrem um míssil de origem desconhecida, programado para atingir a cidade de Chicago. Eles tentam interceptar e/ou destruir o projétil, antes que ele adentre a atmosfera norte-americana, mas são malsucedidos neste intento, o que obrigam os governantes do país a tomarem decisões dificílimas, que afetam todo o mundo…

Roteirizado magistralmente por Noah Oppenheim, este filme se diferencia de produções congêneres por amplificar as angústias íntimas dos profissionais, relacionados a problemas pessoais, mal administrados: o major Daniel Gonzalez (Anthony Ramos) está discutindo com a namorada, quando pressente a ameaça balística e não consegue controlar a animosidade, relacionada ao modo como os seus subordinados ignoram alguns protocolos de higiene e segurança na base que coordena; a capitã Olivia Walker (Rebecca Ferguson), por sua vez, ficou a madrugada inteira acordada, brincando com o seu filho pequeno, bastante febril. Vai para o trabalho insone, sendo obrigada a guardar o telefone celular, antes de adentrar a sala de segurança, enquanto o seu marido leva a criança ao médico, deixando-a sem informações imediatas; ao lado dela, William Davis (Malachi Beasley) demonstra-se ansioso, pois está prestes a casar. Tudo isso interfere na extrema pressão psicológica que eles sentem durante o processo de averiguação de origem do míssil destrutivo, o que toma maiores proporções quando sabemos que o Secretário de Defesa Reid Baker (Jared Harris) está brigado com a filha, recém-divorciada, que mora justamente em Chicago, e que a esposa do presidente (interpretada por Renée Elise Goldsberry) está em viagem, num safári no Quênia. Como se pode salvar o mundo quando as vidas privadas dos envolvidos estão tão destroçadas?

Além dos personagens supracitados, o filme concede importante tempo de tela a Gabriel Basso e Greta Lee, que vivificam pessoas com poderio de negociação, na situação apresentada: o primeiro é um parlamentar afoito, que conhece em detalhes as conseqüências das ações sugeridas ao presidente e ao secretário de segurança, enquanto a segunda é uma funcionária de pentágono que está em folga com o filho, numa reconstituição da Batalha de Gettysburg, travada entre 1 e 3 de julho de 1863, e que foi o embate com maior número de vítimas na Guerra de Secessão norte-americana. Quando atende a um telefonema, para ser informada sobre a iminência de um ataque nuclear, esta personagem, Ana Park, quase não consegue ser ouvida, por causa da abundância de tiros teatralizados no ambiente em que ela estava. Ou seja, ao mesmo tempo em que se tentava impedir uma guerra, lembranças de outra eram reproduzidas enquanto entretenimento. As intenções denuncistas da diretora são clarificadas em instantes como este, que acontecem ao longo de todo o filme, culminando num desfecho elíptico que se dissolve nos sons de explosão ouvidos durante os créditos finais, junto aos acordes da primorosa trilha musical de Volker Bertelmann. Trata-se de um filme adulto e aflitivo. Inteligentíssimo!

Wesley Pereira de Castro.


Fonte da imagem publicada disponível em: https://media.newyorker.com/photos/68ed258fddae4c0d3280bec5/master/w_2560%2Cc_limit/CHANG—THE-HOUSE-OF-DYNAMITE—UBO_20240926_29648_R3.jpg

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]