Apesar de ter nascido em Nova York, o cineasta Eugène Green é um dos maiores representantes barrocos do cinema francês contemporâneo. Na verdade, representa o píncaro do cinema europeu hodierno, visto que já realizou filmes em italiano e em português, além de vários outros idiomas que transversalmente são pronunciados por seus eruditos personagens. Para este diretor, a palavra falada, ouvida e comunicada – através de um diálogo expandido para a espiritualidade do ser – é o seu instrumento elementar, através do qual a colaboração freqüente com o diretor de fitografia Rapahël O’Byrne atinge momentos de suma epifania…
Bastante influenciado pelo método bressoniano, em termos de composição actancial, Eugène Green costuma enquadrar os seus intérpretes de maneira ostensivamente frontal e de maneira desdramatizada. Os diálogos são pronunciados de maneira solene e não raro versam sobre a própria lógica do processo comunicativo. Eugène Green é um esteta e não receia ser hostilizado pelos enquadradores genéricos de filmes. Muitíssimo pelo contrário: ao renegar completamente a sua nacionalidade estadunidense, ele erigiu uma gramática fílmica muito particular, não obstante tendo começado a realizar suas produções cinematográficas quando já passava dos cinquenta anos de idade…
Tal qual seu mentor Robert Bresson (1901-1999), Eugène Green eventualmente também se refere à Sétima Arte como “cinematógrafo”, e evita as narrativas megalomaníacas. Seus roteiros são intimistas e bastante centrados nos diálogos, na pujança particular de cada palavra pronunciada por seus atores. É assim que, no conto de fadas “O Mundo Vivente” (2003), a pronúncia de determinados vocábulos pode ressuscitar pessoas; em “A Ponte das Artes” (2004), a audição de uma música renascentista pode configurar-se num ato de amor, ainda que um dos amantes tenha incorrido no suicídio; e em “A Religiosa Portuguesa” (2009), uma evocação frasal serve como assunção reencarnante de uma figura do passado.
O ponto nodal de seu despojamento talvez esteja na imagem inicial do média-metragem “Correspondências” (2009), em que um computador é iluminado à luz de velas, e um casal adolescente comunica-se via arremedo de mídias sociais de uma maneira que assemelha-se à telepatia “anti-bárbara”, para utilizar um serviço que será recorrente em sua filmografia, já que é desta maneira que o diretor refere-se aos seus patrícios: bárbaros. Uma demonstração elementar de tal aversão cultural está no recente “À Espera dos Bárbaros” (2017), no qual, a fim de proteger-se das ameças e violências do mundo contemporâneo, um grupo de pessoas refugia-se no covil de um casal de magos, onde é proibido utilizar tecnologias eletrônicas e estimula-se sobremaneira a hermenêutica artística.
Neste sentido, o ponto máximo de sua esotérica carreira talvez seja o magnífico “A Sapiência” (2014), no qual um arquiteto francês, em crise matrimonial durante um visita à Itália, é exortado por sua esposa a passear com um jovem rapaz, que tem o sonho de “preencher os espaços vazios com a luz”. Ao relembrar seus próprios sacrifícios, voluntários e involuntários, o arquiteto consente em dedicar-se finalmente a ministrar aulas numa universidade. Admite, ao reencontrar sua esposa, que cuidava da irmã enferma do rapaz, que aprendera bastante com seu pupilo espontâneo. A docência é validade pela troca de experiências. Tal qual se formulará num filme posterior do cineasta, ele percebe que “a esperança é a realidade do presente”. Quase uma obra-prima!
Tendo chegado a este ponto elogioso, podemos perguntar-nos qual o porquê desta revisão filmográfica aparentemente súbita? Primeiro, porque, mesmo não sendo exibido comercialmente em sua integralidade, o ‘corpus’ fílmico de Eugène Green configurou-se num dos maiores tesouros cinefílicos da atualidade; segundo, porque ele realmente merece ser conhecido e divulgado com urgência; e, terceiro, porque, ao ter-se a experiência pessoal de assistir-se a uma de suas obras num estado de avançada exaustão física, experimenta-se um gozo tão intensivo – em nível estético e intrinsecamente erotógeno – que vai-se de encontro à perspectiva apocalíptica de que esse tipo de obra jamais será devidamente consumido pela classe proletária: cabe a nós realizar uma indução interrogativa. Afinal, em sua utilização tramática de um rigoroso cabedal artístico, o cinema maiúsculo de Eugène Green talvez apresente um recorte mui privilegiado da ‘intelligentsia’, oportunamente (auto)criticado em “A Ponte das Artes”. Mas ele não é excludente. Muito pelo contrário, ele convida, ao inebriar-nos. Fica a proposta discursiva, portanto.
Por fim, uma recomendação emergencial: para quem ainda não conhece este diretor, recomenda-se o curta-metragem com tema lusitano “Como Fernando Pessoa Salvou Portugal”, realizado em 2018, sua obra mais recente. Definitivamente obrigatório em seu senso de humor condizente com o enfrentamento do barbarismo hodierno!