Por mais provido de critérios de noticiabilidade que tenha sido, uma manchete alarmante demorou a ser reproduzida pelos telejornais brasileiros: no Estado nortista do Amapá, uma falha de gerenciamento ou um acidente mal-investigado deixou as suas principais cidades sem energia elétrica por mais de uma semana. Como tal, o Estado ficou com o abastecimento de água comprometido, sem víveres nos supermercados e diversos eletrodomésticos pifaram, para enfatizar apenas as consequências imediatas, que desencadearam no adiamento das eleições estaduais e municipais, que ocorreram no dia 15 de novembro de 2020 no restante do país. Isso é o que pode acometer todo o Brasil, caso as propostas privatizadoras do atual Ministro da Economia Paulo Guedes sejam aprovadas. O Brasil sob o bolsonarismo é um cabedal de retrocessos!
Apesar de ser um fato aviltante, esta crise energética local demorou a ser conhecida pelo restante do Brasil porque os veículos de imprensa estão saturados com a quantidade de despautérios proferidos pelo presidente Jair Bolsonaro e seus pérfidos asseclas, que disparam “cortinas de fumaça” [ou seja: táticas de distração da audiência] em quantidade exorbitante. Em quase dois anos de (des)governo, a malevolência presidencial piora a cada aparição pública, sobretudo quando põe em cena o desdém que ele nutre pelas medidas sugeridas pelos profissionais de Saúde para conter o CoronaVírus…
Numa conjuntura catastrófica como essa, cabe aos artistas problematizarem as questões supracitadas em suas obras, nem sempre carecendo explicitar o tom de protesto: a sutileza é também bastante combativa! No caso cinematográfico, a fim de que as denúncias sejam bem-sucedidas, convém haver “um público que deposite um voto de confiança no cinema, sabendo que os filmes ali projetados têm a ver diretamente com sua própria vida, e não têm como único propósito fazer esquecer”. Este mote foi promulgado pelo escritor Rainer Stollmann em relação à filmografia austera do cineasta alemão Alexander Kluge, mas aplica-se muito bem ao filme que abordaremos daqui por diante…
Não obstante transcorrer-se em intimidadoras quatro horas e vinte minutos de duração, o longa-metragem “Luz Nos Trópicos” (2020, de Paula Gaitán) revela-se como um dos mais importantes filmes brasileiros do ano. Premiado no festival curitibano Olhar de Cinema, este filme aborda algumas contradições da sociedade brasileira – e mundial – de maneira poética e desafiadora, sendo uma espécie de derivação mais sensorial e panteísta do clássico “A Idade da Terra” (1980, de Glauber Rocha). Como a realizadora foi casada com o polêmico cinemanovista, esta associação não é nada casual, visto que ela participou diretamente das filmagens e foi diretora de arte do filme em pauta. Além de aparecer em cena mais de uma vez, grávida.
No filme mais recente, a diretora, que possui graduações em Artes Visuais e Filosofia, entremeia o seu percurso pelo Brasil com reflexões multilíngues, que compõem uma geografia e uma cronologia bastante específicas, na exposição de suas obsessões artísticas. De maneira recorrente, são ouvidas divagações sobre a alvorada e o crepúsculo, enquanto fases limítrofes do dia. A luz mencionada no título aparece transmutada de variegadas maneiras no filme, que possui várias subtramas concatenadas.
O mais próximo de um protagonista aparece sob a figura do ator amazonense Begê Muniz, que surge num ambiente congelado da América do Norte e logo é aceito como membro acessório de uma tribo indígena no Brasil (provavelmente, os yanomamis). Corta os cabelos, pinta-os de vermelho e integra-se aos habitantes primevos do país, enquanto uma trama paralela passa a ser deslindada: navegadores europeus, com indumentárias de época, atravessam os rios do Pantanal mato-grossense e executam atividades espeleológicas na Chapada dos Guimarães. O sexo ocorre casualmente, após a aparição de uma mulher nua, que logo recebe uma contrapartida masculina, através de um jovem que despe-se encarando a câmera. Clara Choveaux reage a tudo o que vê com espanto e deslumbramento, louvando as benesses da Natureza. O cantor Arrigo Barnabé, por sua vez, utiliza a sua voz expressiva e seu olhar eloquente como instrumentos actanciais. Versos em português arcaico, francês e kuikuro, entre outros idiomas, surgem na banda sonora. “Luz nos Trópicos” é um filme que requer múltiplas camadas de decifração, portanto.
Em meio à trajetória do personagem de Begê Muniz – que, em dado momento, volta para os EUA, onde lida com os inevitáveis despertencimentos identitários – vemos uma artista plástica (Maíra Senise, também figurinista do filme) pintar alguns quadros e modelar esculturas de barro, acompanhamos o périplo naturista do lusitano Carloto Cotta entre seus companheiros de continente, e encantamo-nos perante o magistral desenho de som do filme e a fotografia de Pedro Urano, praticamente um personagem à parte. É um filme que parece árduo, antes de iniciada a sessão, mas que inebria-nos a cada instante. Ao fazer com que o espectador confronte, de maneira pulcra, situações que referendam os principais problemas do Brasil hodierno – que advêm desde a colonização portuguesa – a diretora comprova que seu estilo é um tanto elitizado, mas não alienado: ela demonstra que a arte é inequivocamente política, mesmo quando atravessada por certo hermetismo.
A pergunta que intitula este arremedo de resenha (cantarolada no interior de uma caverna), as imagens documentais do cotidiano indígena e os inúmeros confrontos étnicos e espaço-temporais que o filme promove, em viés dialogístico de cariz anímico, são apenas alguns dos aspectos egrégios desta obra, que contrapõe o indianismo romantizado ao xamanismo de resistência. No desfecho, um ‘travelling’ pela noite nova-iorquina expõe o fascínio dúbio da urbanização. “Luz nos Trópicos” é um filme que requer percepção ampliada de todos os sentidos espectatoriais. E que não exclui a necessidade de noticiabilidade denuncista evocada no primeiro parágrafo. Atentemos: é um filme que tem a ver diretamente com as nossas vidas, tanto quanto as notícias urgentes sobre as abominações do bolsonarismo…
Wesley Pereira de Castro.