No prefácio do clássico livro “Mulheres, Raça e Classe”, da filósofa Angela Davis, a pesquisadora Djamila Ribeiro enfatiza a recusa de um olhar ortodoxo acerca das esquerdas políticas, por parte da autora, em razão de haver a necessidade de uma “não hierarquização das opressões, ou seja, o quanto é preciso considerar a intersecção de raça, classe e gênero para possibilitar um novo modelo de sociedade”. No livro em pauta, a autora traça um panorama histórico das lutas sufragistas por parte de norte-americanas progressistas, mas deixa claro que muitas dessas mulheres mantinham posturas racistas, advindas do pendor colonizatório de suas educações.
Partindo desta reflexão mui necessária, atrevemo-nos a resenhar o mais recente filme da cineasta e atriz californiana Greta Gerwig, “Adoráveis Mulheres” (2019), indicado a seis categorias no Oscar 2020 mas preterido na categoria de Melhor Direção, o que engendrou polêmicas acerca do machismo dominante na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Ocorre que, em paralelo a estas polêmicas, foi muito criticado o olhar excessivamente “branco” (porque privilegiado) da diretora, que adapta um dos romances canônicos da literatura anglofílica. Em que sentido tais polêmicas favorecem ou denigrem o filme em si?
Protagonizado por uma Saoirse Ronan em estado de graça – e merecidamente indicada ao prêmio de Melhor Atriz, ainda que sem chances reais de ser laureada – esta nova versão de “Mulherzinhas”, publicado em 1868 por Louisa May Alcott [1832-1888], beneficia-se de um roteiro magistral, escrito pela própria diretora. Atualizando muitas das situações originais do livro, ainda que mantendo a rigorosa ambientação de época, Greta Gerwig traz à tela suas inquietações particulares, em defesa do lugar de fala das mulheres numa sociedade artística dominada ostensivamente por homens. Os maravilhosos diálogos do filme convertem a personagem Josephine March num alter-ego da escritora supracitada e, por extensão, da própria diretora. Tanto que, em mais de um momento, a personagem parece dirigir-se diretamente aos espectadores, a fim de justificar a aparência intencionalmente piegas do desfecho romântico de sua obra, em que o casamento da protagonista torna-se imperativo (em contraposição à morte da mesma, sugerida por seu editor). Por mais que os enlaces amorosos não sejam mal-vistos pela escritora e muito menos pela diretora (casada com o também cineasta Noah Baumbach), o casamento surge como uma limitação para os anseios produtivos da personagem, que é uma escritora contumaz de estórias protagonizadas por mulheres destemidas.
Sendo filha de uma mãe ativista (interpretada por Laura Dern), em meio à sangrenta Guerra de Secessão estadunidense – ocorrida entre 1861 e 1865, que tinha justamente a ver com a abolição dos negros escravizados –, Josephine tem seu destino entrelaçado pelas sagas de suas três irmãs: a aparentemente fútil mas mui talentosa enquanto pintora Amy (Florence Pugh, merecidamente indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante); a tímida mas com pretensões de tornar-se atriz Margaret (Emma Watson); e a progressivamente adoecida mas extremamente hábil ao piano Elizabeth (Eliza Scanlen). Um jovem rico interpretado por Timothée Chalamet aparece como interesse romântico de mais de uma dessas irmãs, enquanto uma tia riquíssima e solteira, vivida por Meryl Streep, interferirá drasticamente no amadurecimento proto-aristocrático de uma delas. Porém, uma tragédia familiar obrigará todas elas a reunirem-se novamente e questionarem os papéis sociais que desempenham…
Interessantemente, o pai destas garotas parecerá ausente de inúmeras situações-chave, não obstante ser resgatado de um hospital militar por sua impávida esposa, demonstrando que, no universo enredístico do filme, as ações femininas é que são efetivamente determinantes. Para tal, a diretora serve-se de uma montagem com idas e vindas no tempo, confundindo épocas e encontrando ecos pontuais, no afã por demonstrar como a opressão intentada pela sociedade machista limita e categoriza de maneira injusta as atividades das mulheres que recusam o título de donas-de-casa. Acontecia no século XIX e segue acontecendo nos dias de hoje, infelizmente, conforme faz questão de frisar a diretora e roteirista, de maneira tão inteligente quanto explícita em mais de um momento. Vide a dificuldade de Josephine em receber pagamentos adequados aos seus méritos literários ou a insegurança de Amy em expor as suas pinturas, além das extremas agruras aquisitivas em que Margaret envolve-se ao imitar osmoticamente os gastos fúteis de suas amigas ricas. Tudo muitíssimo oportuno enquanto denúncia ainda em curso!
Além de indicado aos prêmios de Melhor Filme, Melhor Trilha Musical e Melhores Figurinos, “Adoráveis Mulheres” é o favorito na categoria Melhor Roteiro Adaptado no Oscar 2020. Entretanto, isso não abona o filme de ser atacado tanto por cinéfilos mais ríspidos, que reclamam que o filme padece de “amor pela imagem” – visto que privilegia o discurso de adesão às causas femininas em detrimento dos enquadramentos elaborados de câmera –, quanto por certos representantes da esquerda política, que lamentam a “branquitude” exacerbada das reivindicações tramáticas. Um dos méritos mais elogiáveis do filme é justamente não julgar as personagens que aderem à planificação marital sugerida pelas convenções sociais do período retratado, defendendo uma noção de sororidade dialogicamente expressa da seguinte forma: “a vida é muito curta para que uma irmã fique brigada com a outra”. Será que isso dá conta das contradições destacadas por Angela Davis quanto à ambivalência do movimento histórico pelo direito ao voto feminino (das mulheres brancas)? Sigamos em debate. Ajudemos este ótimo filme a ser ainda mais visto e comentado…