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Para além das láureas merecidas e (pré-)indicações aguardadas, visibilidade feminina importa!

Para além das láureas merecidas e (pré-)indicações aguardadas, visibilidade feminina importa!

Vencedor do prêmio de Melhor Filme na Mostra ‘Un Certain Regard’ do Festival Internacional de Cinema de Cannes e aposta brasileira a uma pré-indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, “A Vida Invisível” (2019, de Karim Aïnouz) instaura-se desde a sua estréia como um dos mais relevantes filmes do ano, tanto estética quanto discursivamente. Ao adotar uma trama com forte cadência melodramática, com base num romance homônimo da escritora Martha Batalha, este filme sustenta-se em impressionantes direção de arte e desenho de som para narrar as desventuras familiares de duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), separadas por conta de mentiras alimentadas por seus entes queridos…

No início da trama, na abertura da década de 1950, a impetuosa Guida tenta convencer a sua irmã a desviar a atenção de seu pai para que ela possa encontrar-se com um marinheiro grego por quem apaixona-se e foge. Ao invés de compor estas personagens femininas da maneira tipicamente assexuada que demarca os melodramas hollywoodianos, o roteiro de Murilo Hauser não tem pudores em relação à necessidade de recorrer a certa escatologia ressignificada. Desde a vontade de defecar que toma Guida de assalto quando percebe-se ansiosa para encontrar seu amado até a hemorragia que escorre por suas pernas ao ignorar o puerpério, são diversas (e marcantes) as seqüências em que fluidos corporais incontidos metonimizam os estados emocionais das protagonistas. Vide o vômito externado por Eurídice quando toca o pênis ereto de seu marido pela primeira vez, o compartilhamento urinário entre ela e sua melhor amiga Zélia (Maria Manoella) antes da cerimônia de casamento, ou o seu desespero ao tentar lavar o esperma despejado em sua vagina após uma transa súbita. Os moldes melodramáticos do diretor são muito mais fassbinderianos que sirkianos, portanto.

Numa genial demonstração de pleno controle de sua ‘mise-en-scène’, o cearense Karim Aïnouz eventualmente faz com que a trama seja atropelada por efeitos sonoros perturbadores, explosões cromáticas deslumbrantes e efeitos de montagem sobremaneira elaborados em suas implantações elípticas. O pendor melodramático apresenta-se de maneira pós-moderna, maneirista, onipresente mas não centralizada, como ocorre nos clássicos norte-americanos. Da mesma maneira que percebemos nos enquadramentos, o drama explode nas periferias, seja dos cenários, seja das interpretações. Afinal, na vida cotidiana, nem sempre o tempo pára quando precisamos chorar. Por isso, no filme, quando acha-se um cofre com cartas há muito escondidas, vários elementos perturbam a cena, do mesmo modo que um encontro inesperado entre tia-avó e sobrinha-neta é atravessado por diálogos triviais, como uma oferta desviante de café enquanto a personagem-título emociona-se copiosamente…

Não obstante ser um filme de época – com uma reconstituição mui esmerada da cidade do Rio de Janeiro na década de 1950 – o intuito do filme é manifestar-se diretamente contra o retrocesso moralista que caracteriza os tempos hodiernos, especialmente no Brasil sob o jugo pérfido do bolsonarismo. Por isso, a composição das personagens principais é tão minuciosa em sua exposição de caracteres autênticos. Não são as tradicionais personagens recatadas que a sinopse faria supor – o que surge como crítica ferrenha do roteiro, inclusive no modo como Eurídice involuntariamente educa a sua filha pequena como continuidade sombreada dos companheiros masculinos, tal qual ocorrera com a sua mãe. Enquanto isso, o filho de Guida é respeitado em sua sensibilidade peculiar. Tanto que, ao ser censurado por estar num banheiro feminino, alega de maneira certeira que é apenas uma criança. Percebe-se nele, evidentemente, um reflexo do próprio diretor, que vangloria-se por ter sido criado por mulheres fortes e independentes do jugo masculino.

Em meio a personagens femininas tão imponentes, há um verdadeiro pilar de sustentação que talvez mereça com maior justiça a reversão do título do filme: a magistral personagem da socióloga e dramaturga Bárbara Santos, a ex-prostituta Filomena, que dedica-se a cuidar das crianças de mulheres abandonadas por seus parceiros sexuais. Amparando rigorosamente Guida, depois que ela foi expulsa de casa, esta personagem engendra um quiproquó nomenclatural, com as melhores intenções do mundo, que desencadeia um clímax devastador num cemitério: o momento em que Eurídice estapeia o seu pai, a partir do qual será perpetuamente maculada pelo laudo psiquiátrico da Psicose Maníaco-Depressiva. E, graças à sublimidade moral da personagem Filomena, Guida compõe, numa carta, aquele que é o grande lema do filme: “família não é sangue. É amor!”. Nos dias de hoje, em que “ninguém solta a mão de ninguém” virou mote de enfrentamento, esta redefinição da noção de família é algo salvaguardador!

Emocionante em cada minúcia relacional e emergencial em cada filigrana discursiva, “A Vida Invisível” sobressai-se pelos méritos primorosos de uma equipe técnica perfeitamente entrosada: a fotografia abundante em tons vermelhos de Hélène Louvart, a trilha musical lacrimosa de Benedikt Schiefer (que conta com um fado durante os créditos finais) e as atuações de um ótimo elenco secundário (com destaque para a excelente presença de Gregório Duvivier como o esposo de Eurídice e para a expressiva Cristina Pereira como a filha adulta deste casal, além da participação especial certeira da veterana Fernanda Montenegro), entre outros requisitos extraordinários. É um filme que faz o público chorar ao rememorar os próprios problemas projetados na tela, refletir sobre como injustiças de gênero, classe e raça são legitimadas por um conservadorismo oportunista, e, oxalá aconteça, revoltar-se contra as mazelas derivadas deste processo, recentemente chanceladas no país por um polarizado (e inglório) resultado eleitoral. Filmaço!

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