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Sobre a vicinalidade ou por que devemos prestar atenção a quem está do nosso lado

Sobre a vicinalidade ou por que devemos prestar atenção a quem está do nosso lado

Em seu perfil no Facebook, a revista Cahiers du Cinéma publicou um grande elogio ao filme brasileiro “No Coração do Mundo” (2019, de Maurílio Martins & Gabriel Martins), quando esta obra estreou na França, em dezembro de 2019. Segundo a publicação em pauta, que reproduz um elogio do cineasta Kléber Mendonça Filho, este filme seria “um dos melhores da atual ‘nouvelle vague’ brasileira, e é precisamente o que o desastre político quer erradicar: apaixonado e verdadeiro”. No editorial de março de 2020, os redatores comunicaram uma demissão em massa, visto que a revista fora adquirida por um conglomerado de produtores e homens de negócios. A opinião crítica dos mesmos estaria sob suspeição, caso eles não se manifestassem contrários a isso…

Esta associação noticiosa possui uma intenção bem definida: no mês de abril de 2020, quando seria publicada a despedida oficial dos redatores da Cahiers du Cinéma, a revista precisou interromper completamente as suas atividades, em razão da quarentena generalizada adotada sobre os países europeus, que estão sendo afligidos por milhares de vítimas fatais do Covid-19. A edição de abril seria a última. Ao invés disso, as edições antigas não estão chegando às bancas (fechadas) e há um anúncio informativo sobre a importância do confinamento. Mas o filme brasileiro pode e deve ser assistido!

Co-produzido pelo Canal Brasil – uma emissora de TV por assinatura especializada na difusão da cultura nacional do referido país – e dirigido por dois irmãos que destacam-se no sistema de camaradagem que permeia os filmes realizados no Estado de Minas Gerais, “No Coração do Mudo” possui duas tônicas genéricas bem definidas: conforme foi anunciado pela Cahiers du Cinéma, começa como um drama ameno e, de repente, revela-se um poderoso ‘thriller’ de ação. Em ambas as metades, diagnostica traços mui peculiares da cidade mineira em que ocorreram as filmagens, Contagem.

Sinopticamente, o filme parece complicado, visto que seu roteiro desenvolve-se numa estrutura de painel de personagens: não há necessariamente um protagonista, mas situações que se intercalam, afetando diversos moradores de uma mesma comunidade. Logo na magistral seqüência de abertura, conhecemos o casal Marcos (Leo Pyrata) e Ana (Kelly Crifer). Ele possui envolvimento indireto com o tráfico de drogas local, e busca uma maneira imediata de ganhar muito dinheiro. Ela é cobradora de ônibus há quase três anos e enfrenta humilhações diárias. No instante em que eles aparecem pela primeira vez, é aniversário de Marcos, que está sendo homenageado num serviço de telemensagens. Até que um tiro súbito interrompe a celebração…

O tiro foi disparado por Beto (Renato Novaes), um criminoso simpático que, sempre que está em apuros, recorre aos auxílios de seu honesto irmão Miro (Robert Frank), que, por sua vez, desenvolve um enlace amoroso com a cabeleireira Rose (Bárbara Colen). Esta também tem interesse em melhorar de vida, e deseja vender o seu carro. Oferece-o a Ana, mas ela ainda está na auto-escola, aprendendo a dirigir. Em dado momento, Rose empresta dinheiro à sua grande amiga Selma (Grace Passô), que trabalha com Marcos numa pequena-empresa de fotografias escolares. Mas eles desejam mais dinheiro. E é assim que a segunda metade da trama insurge-se, quando vários outros tiros são disparados…

Não obstante possuir um clímax bem definido, inusitadamente sonorizado pelo clássico do rock-brega “Mordida de Amor”, da banda Yahoo, o que realmente se sobressai encantadoramente em “No Coração do Mundo” é a sutil imbricação de personagens, o deslindar lento das relações que envolvem todos os personagens supracitados. É um filme sobre a pulsação da vida, sobre a beleza do cotidiano, eventualmente interrompida pelas mortes oriundas da subsunção ao Capitalismo. E, frente à necessidade de maior interação emotiva desencadeada pelo confinamento sugerido, a fim de que o CoronaVírus não se espalhe, assistir a este belo filme proporciona não apenas oportunos momentos estéticos – de constatação de um exuberante cinema brasileiro, produzido à margens da Globo Filmes – mas também a celebração do humanismo cotidiano, uma ode aos (re)encontros possíveis entre amigos e amantes. Alguns destes encontros levam à criminalidade fortuita. Mas este aspecto requer uma análise mais detalhada, o debate benfazejo que pode surgir após a audiência conjunta – e, por medidas de segurança, distanciada – ao filme.

Além da direção firme e do roteiro terno, ‘No Coração do Mundo” chama também a atenção por uma direção musical esplêndida – a ‘rapper’ MC Carol de Niterói participa como coadjuvante, inclusive – e pela direção de fotografia irretocável, com destaque para a cena que serve de ilustração fotogramática a este texto, no qual percebemos a grandiosidade da interpretação de Grace Passô, que transmite emoções opostas num mesmo enquadramento, num plano demorado que demonstra a atriz sublime que ela é. Na ocasião, o cineasta Carlos Reichenbach [1945-2012] é reverenciado através do nome de uma escola. E isso diz muito sobre o quão relevante é este filme na conjuntura política hodierna: amar é também resistir!

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