Na segunda metade da década de 1990, uma série animada japonesa destacou-se pelo modo acachapante com que ultrapassou as expectativas referentes aos conflitos de ficção científica contidos em seu enredo: em “Neon Genesis Evangelion” (1995, de Hideaki Anno), inicialmente acompanhamos as aventuras e desventuras do adolescente Shinji Ikari, escalado para pilotar um andróide de enormes proporções em batalhas contra monstros gigantescos, cognominados como Anjos. Não se sabe exatamente como estes Anjos surgem, mas percebemos de imediato que eles são estrondosamente destrutivos. Assemelham-se a animais terrestres, mas possuem um código genético quase idêntico ao humano, o que hipertrofia o mistério de suas aparições. O ano é 2015, e a capital japonesa foi dizimada por uma explosão conhecida como Segundo Impacto, cuja manutenção impeditiva de repetição requer esforços integrados das maiores potências mundiais. Mas este é apenas um ponto de partida tangencial: o que realmente interessa são as relações humanas estabelecidas entre os personagens…
Quando esta série estreou, estavam em evidência os ‘tokusatsu’, seriados caracterizados por batalhas entre robôs e monstros espaciais, e, sinopticamente, “Neon Genesis Evangelion” parece ser conduzida da mesma forma. Porém, à medida que os episódios avançam, notamos de maneira embasbacada uma mudança radical de condução narrativa: os embates são meros pretextos para que conheçamos as crises emocionais dos personagens e suas inclinações fortemente freudianas. Shinji, por exemplo, é uma demonstração minuciosa dos apanágios edipianos, evidenciando o poderoso substrato psicanalítico do roteiro, escrito pelo próprio diretor, com base em experiências de sua vida íntima marcada pela depressão.
Tão logo Shinji adentra o centro de comando responsável por seu treinamento, descobre que está sob o jugo de seu austero pai, Gendo Ikari. A mãe de Shinji falecera de forma traumática e ele sente-se bastante solitário e abandonado pelo ocupado progenitor. É tutoreado pela doce, bela e estabanada Misato Katsuragi, que o convida para morar com ela, o que causar-lhe-á alguns inconvenientes, em razão de suas irresponsabilidades domésticas e do comportamento pessoal sexual e etilicamente promíscuo. Pouco a pouco, Shinji e Misato instauram uma rotina suportável de convivência, até que uma garota histriônica vinda da Alemanha é convocada para exercer funções semelhantes às de Shinji e passa a morar com ele e Misato. Esta garota chama-se Asuka e, numa situação de tédio, concede o primeiro beijo de Shinji, não obstante alegar sentir um nojo intensificado em relação a ele. Não aconteceu quase nada ainda: falta muito a ser dito sobre estes personagens!
Os complementos robóticos pilotados por Shinji e Asuka são designados pela sigla EVA (o que explicita a verve religiosa metonimizada no título do ‘anime’), e eles são responsáveis pelos veículos números 01 e 02, respectivamente. Há outra adolescente associada ao protótipo veicular número 00, Rei Ayanami, sobremaneira taciturna e por quem Shinji obviamente passa a demonstrar um inevitável interesse sexual. Num dos episódios, Shinji a flagra saindo do banho, vestindo a calcinha de maneira lenta e quase litúrgica, o que ecoará diversas vezes ao longo da narrativa. Como são adolescentes imaturos e pouco sociáveis, eles não sabem lidar com as suas pulsões eróticas, tentando justificar cientificamente as alterações corporais inelutáveis que são trazidas pela puberdade.
Além das situações de treinamento e combate envolvendo Shinji, Mei e Asuka, acompanhamos também o seu cotidiano escolar, onde surgirão alguns personagens essenciais à tessitura relacional deslindada a partir das angústias típicas desta fase etária. Notas baixas, ereções súbitas, brigas no recreio e paixões platônicas desenvolvem-se em paralelo às tensões de um mundo permanentemente ameaçado pelas chegadas dos destrutivos Anjos, no qual o ruído onipresente das cigarras denota a reformulação de um ecossistema outrora destruído pelas conseqüências radioativas do Segundo Impacto. Com isso, interesses espectatoriais variegados são seduzidos pela destreza e experimentalismo das soluções narrativas levadas a cabo por Hideaki Anno.
Para quem tem acesso ao ‘anime’ muito tempo após o seu lançamento, o impacto é devastador: “Neon Genesis Evangelion” surpreende em todos os aspectos, sendo a sua direção absolutamente inventiva, flertado com opções estéticas godardianas e tarkovskianas. A montagem é intercalada por diversos intertítulos interrogativo-existenciais e a trilha musical serve-se do silêncio em momentos-chave, havendo instantes em que a imagem permanece paralisada por vários minutos, a fim de representar o estado psquício dos personagens. As inovações visuais e sonoras saltam aos olhos e ouvidos nos vinte e seis episódios, com cerca de vinte e três minutos cada um deles, totalizando mais de dez horas, para quem quiser maratonar o ‘anime’ como se fosse um filme. Excelente, por sinal, mas com um inconveniente: requer pausas para respiração, tamanha a quantidade de conceitos (religiosos, psicanalíticos, sociopolíticos, ecológicos) destilados e certa redundância intencional nas cenas de batalha.
Feita esta apresentação sintética, é difícil controlar os adjetivos empolgados ao resenhar-se este capítulo brilhante do universo ‘pop’ no final do século XX: os títulos dos episódios são redigidos como poemas, o capricho nos traços animados é insigne, e a polêmica desencadeada plea brusca mudança de tom nos dois episódios finais obrigou a produtora a realizar um longa-metragem posterior dando um encerramento “devido” aos eventos militares e corporativos deixados em suspenso pelo tratamento psicanalítico do diretor às crises íntimas de seus personagens. E, neste sentido, o episódio 24 – batizado internacionalmente como “The beginning and the end, or ‘Knockin’ on Heaven’s door” – é magistralmente primoroso, quando surge mais um piloto adolescente, Kaworu Nagisa, que, além de emular um interesse homossexual por Shinji, instaura uma complexa relação entre componentes opostos do conflito, perpassado por um misticismo religioso de cariz múltiplo.
Esplêndida em seus caracteres animados, minuciosa em suas explanações psicanalíticas (um dos episódios traz em seu título uma menção ao “estágio oral” freudiano), brilhante em sua quebra continuada de expectativas tramáticas e surpreendente em seu compêndio de referências cinematográficas eruditas e alternativas, “Neon Genesis Evangelion” merece aplausos demorados como uma das mais influentes obras audiovisuais do final do século passado e um dos mais eficazes suportes existenciais e psicológicos para ‘otakus’ na lida diuturna com as tentações suicidas induzidas pelos ritmos produtivos do Capitalismo hodierno. O “projeto de instrumentalidade humana” descrito no derradeiro episódio do ‘anime’ é um testemunho denuncista que sobrevive ao tempo. Em termos práticos: infelizmente!



