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“Quanto custa para recuperar a memória de um país?”: uma resposta pragmática, via excelente documentário.

“Quanto custa para recuperar a memória de um país?”: uma resposta pragmática, via excelente documentário.

Por mais de trinta e quatro anos — entre agosto de 1954 e fevereiro de 1989, para ser preciso —, o general paraguaio Alfredo Stroessner [1912–2006] esteve sob o comando de seu país, na mais duradoura das violentas ditaduras sul-americanas. Morto por causas naturais, foragido no Brasil, sem nunca ter sido julgado, os atos deste facínora permaneceram insuficientemente conhecidos por muito tempo, em razão de o Paraguai não ter registrado imagens denuncistas do período em que ele esteve no governo, por motivos compreensíveis. Dessa época, restaram os ‘jingles’ celebratórios e as filmagens efusivas de acordos entre este ditador e os militares brasileiros, durante a fundação da Usina Hidrelétrica de Itaipu, entre 1975 e 1972. Em reportagens estrangeiras, entretanto, falava-se abertamente sobre os desparecimentos, prisões e torturas ocorridas durante a gestão stroessneriana…

Depois de quase cinco anos buscando financiamento para pagar a cinematecas europeias pela aquisição de imagens e sons relacionados ao seu próprio país, o cineasta Juanjo Pereira finalizou o documentário “Sob as Bandeiras, o Sol” (2025), que tematiza, justamente, os fatos ocorridos, no Paraguai, durante as mais de três décadas do governo de Alfredo Stroessner. Começa-se com a apresentação de animações sobre o caráter subdesenvolvido da nação, que faz fronteira com Argentina, Brasil e Bolívia, estando politicamente eclipsado pelos dois primeiros; em seguida, acompanhamos os desfiles celebrando a chegada do ditador ao poder. Por fim, acompanhamos as notícias sobre o seu falecimento e as condições de sucessão governamental, através de manobras efetuadas por seu próprio genro, Andrés Rodríguez Pedotti [1923–1997], mui oportunista e associado ao tráfico de drogas, de modo que, ainda hoje, o partido de direita — paradoxalmente associado à cor vermelha — continua vigendo. Ao longo de uma hora e meia de projeção, temos acesso a um documentário poderosíssimo, com imagens até então não vistas sequer pelos paraguaios.

Seguindo o molde objetivo dos trabalhos iniciais de Silvio Tendler [1950–2025] — sobretudo os já clássicos “Os Anos JK — Uma Trajetória Política” (1980) e “Jango” (1984) —, este documentário possui acentuado senso de humor, manifesto primordialmente na focalização de crianças atônitas, fotografadas e filmadas em meio aos eventos oficiais, e na hipertrofia de alguns efeitos sonoros, extraídos dos arquivos originais: assim, ouvimos moscas atrapalharem a empáfia de políticos bajuladores, na proclamação de discursos encomiosos direcionados a Alfredo Stroessner, bem como ruídos que anunciam a beligerância, por detrás de desfiles militares e comemorações em comícios. Num debate sobre o filme, exibido numa seção não-competitiva da vigésima terceira edição do DocLisboa, o seu realizador explicou que ele e seus companheiros de equipe são particularmente fascinados pelos aspectos sonoros dos filmes, o que explica o magistral desenho de som desta produção.

Insistindo que o que ele expõe neste documentário é o seu ponto de vista específico sobre a ditadura strausserniana, e não o testemunho definitivo sobre as malevolências cometidas durante o seu governo, Juanjo Pereira enfatizou o quão difícil e custoso foi ter acesso à matéria-prima audiovisual que utiliza em seu filme, trazendo à tona questões discursivas sobre questões colonizatórias envolvendo a posse de imagens sobre conjunturas nacionais alheias. A despeito de tudo isso, o filme é extraordinariamente bem montado e completo na exposição das dolorosas condições de um contexto político excludente, em que se impõe a democracia como sendo “a vontade da maioria”. Para quem lidou recentemente com a chaga do bolsonarismo, foi doloroso assistir a trechos de habitantes rurais, falando em idioma guarani, dizendo que se identificam pessoalmente com as ações de Alfredo Stroessner. A manifestação inconveniente dos “pobres de direita” não é uma exclusividade contemporânea, infelizmente!

Vencedor do prêmio FIPRESCI — concedido pela Federação Internacional de Críticos de Cinema — no Festival de Berlim, “Sob as Bandeiras, o Sol” dedica trecho considerável de sua metragem à relação de extremo protecionismo concedida por Alfredo Stroessner ao cirurgião nazista Josef Mengele [1911–1979], que se refugiou no Paraguai, e que teria sido contratado como médico pessoal da família do ditador. Não obstante toda a pressão internacional, concernente à observação dos direitos humanos, Alfredo Stroessner permaneceu impune e envelheceu de maneira privilegiada, hospedado em recantos luxuosos do Brasil, conforme exibido no filme. Muito importante que este documentário exista, a fim de reparar esta injustiça histórico-nacional aberrante. E, além de tudo, é um filme extraordinário. Recomendamo-lo com bastante empolgação — e com a dolorosa percepção de que o seu assunto ainda não foi extirpado, infelizmente!

Wesley Pereira de Castro

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Fonte da imagem disponível em: https://images.squarespace-cdn.com/content/v1/68256a541ad3a257cdd3906c/199bb673-6ed5-445b-bdbb-8990d592d8f6/Screenshot+2025-05-23+at+4.23.29+PM.png

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