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“Quando teus olhos se acostumarem à escuridão, a pantera aparece” (um filme terno, para além de qualquer listagem)

“Quando teus olhos se acostumarem à escuridão, a pantera aparece” (um filme terno, para além de qualquer listagem)

A edição de dezembro da tradicional revista francesa Cahiers du Cinéma é deveras aguardada pelos cinéfilos internacionais, pois traz em seu editorial a lista com os dez melhores filmes do ano. Em 2021, os editores anteciparam-se através das mídias sociais, de modo que, na última segunda-feira de novembro, os filmes favoritos desta publicação já eram conhecidos. E, como de praxe, não há muitas surpresas: além de podermos adivinhar facilmente quais filmes seriam escolhidos ao analisar as matérias de capa dos meses anteriores, há um padrão de extrema coerência estilística que segue mantido…

Na primeira posição, um filme belíssimo que estreou com atraso nos cinemas da França, “First Cow – A Primeira Vaca da América” (2019, de Kelly Reichardt – comentado aqui). Era mais do que esperado e, por que não dizer, também merecido. Chamou a atenção a ausência dos novos filmes de Clint Eastwood [“Cry Macho – O Caminho Para Redenção”] e de M. Night Shyamalan [“Tempo”], já que ambos os diretores pertencem ao panteão recorrente da revista, tal qual ocorre com o onipresente Bruno Dumont, que comparece na quinta posição com “France” (2021).

Dois títulos foram merecedoras de certa controvérsia: a inclusão de “A Crônica Francesa” (2021, de Wes Anderson) na sexta posição, bastante questionada por alguns leitores; e a escolha do filme suíço “A Garota e a Aranha” (2021, de Ramon Zürcher & Silvan Zürcher) na oitava posição, o que talvez tenha sido inesperado para alguns. Os demais títulos eram positivamente previsíveis, incluindo o mais recente trabalho do polêmico Paul Verhoeven [“Benedetta”] na derradeira posição e a opção por uma das duas maravilhas realizadas em 2021 pelo japonês Ryusuke Hamaguchi (sobre quem falaremos num texto vindouro). Foi uma boa lista, portanto!

Obviamente, pululam os comentários relatando filmes não mencionados e, sem quereremos aprisionar a beleza deste roteiro a um estratagema publicitário – como é, de fato, esta lista –, convém elogiarmos a mais recente produção da cineasta Céline Sciamma, o delicado “Petite Maman” (2021). Reconhecida entre suas especialidades constitutivas, deparamo-nos neste filme com mais uma trama sobre reconciliação geracional, através de um enredo com um toque de realismo mágico: conforme indicado pelo título, trata-se do encontro entre uma garotinha de oito anos (magnificamente interpretada Por Joséphine Sanz) e a sua mãe, na mesma idade que ela (interpretada, no caso, pela irmã gêmea da atriz infantil, Gabrielle Sanz). O entrosamento é imediato!

A duração é curtíssima – menos de uma hora e quinze minutos – mas a desenvoltura emocional possui efeito duradouro: as situações potencialmente traumáticas acontecem fora de campo (uma cirurgia e uma morte, em tempos distintos), de modo que não há um clímax narrativo, mas a instauração de uma singeleza prolongada. Logo no começo, acompanhamos esta garotinha, de nome Nelly, que está a despedir-se de um grupo de senhoras idosas: sabemos que a sua avó acabara de falecer, o que deixará a sua mãe em estágio de intensificada depressão. Interpretada por Nina Meurisse, esta mãe vai com Nelly e o marido (Stéphane Varupenne) para a casa em que foi criada, onde encontra objetos e brinquedos de quando era criança. Ao perceber que a mãe “não era muito boa em soletrar, mas desenhava muito bem”, Nelly desenvolve maior conexão afetiva com sua progenitora, de modo que, quando ela some durante uma crise de tristeza, a garotinha a descobre em fase infantil…

Ao brincar numa região arbórea, onde sua mãe afirma ter construído um abrigo quando era pequenina, Nelly conhece Marion – e esta última logo percebe que a nova amiguinha possui o mesmo nome que a sua avó. As duas brincam juntas, com naturalidade e inocência tipicamente pueris, mas fica evidente que ambas pertencem a épocas diferentes: a “música do futuro” que Nelly ouve, e que Marion pede para escutar, possui letra composta pela própria diretora, e alguns versos são transcritos durante os créditos finais. Seu tema é a beleza dos sonhos infantis, sobremaneira respeitados neste filme.

Consciente de que está em contato com a própria mãe, Nelly começa a refletir acerca de algo que sempre a perturbou: será que a infelicidade continuamente demonstrada pela Marion adulta tem a ver com o seu nascimento ou ela sempre teve esta tendência ao comportamento taciturno? O filme evita responder a isso de maneira determinista, preferindo estender a interação entre as duas garotinhas, sendo esta habilidade dialogística um dos traços mais aplaudíveis da filmografia de Céline Sciamma. Quem viu “Tomboy” (2011), “Garotas” (2014) ou “Retrato de uma Jovem em Chamas” (2019) perceberá as ressonâncias: a sensibilidade inequívoca da diretora e roteirista quanto à afirmação feminina impressiona pela excelência!

Evitando explicar como ocorreu a fissura temporal que permitiu que Nelly encontrasse a garotinha Marion, o filme oferece-nos um desfecho magnífico, que demonstra com efetividade como podemos ajudar alguém – e, por extensão, ajudar-nos também – que sofre por causa da depressão. A ternura que abunda nesta breve estória de amor suprafilial é algo que salva vidas!

Wesley Pereira de Castro.

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