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“Qual é o lado das árvores que possui mais galhos?” – ou: onde termina a Ecologia e começa o Capitalismo?

“Qual é o lado das árvores que possui mais galhos?” – ou: onde termina a Ecologia e começa o Capitalismo?

Em várias das listas publicadas com os “melhores filmes de 2020”, uma produção do ano anterior aparece em destaque: “First Cow” (2019), filme mais recente da inconfundível diretora estadunidense Kelly Reichardt. A despeito de sua autoralidade, essa diretora ainda é insuficientemente valorizada. Por mais louvada pelos críticos que seja, seus filmes raramente recebem lançamentos comerciais, de modo que o grande público não tem acesso a seu modo mui peculiar de enxergar a vida…

Em entrevistas, a cineasta costuma dizer que o que caracteriza os seus personagens é a ausência de uma “rede de segurança”. Ou seja, ela retrata predominantemente pessoas com comportamentos erráticos, que vivem à deriva em mais de um sentido, numa comunidade em que não se sentem inseridos. Em seu curto mas efetivo corpus fílmico, a constante lida ambiental surge como elemento acessório das personalidades de seus protagonistas. Foi assim na estréia em “River of Grass” (1994), em que as características pantanosas da região da Flórida interferem na imersão criminal da filha de um policial jazzista, foi assim neste seu filme mais recente, quiçá o mais definido tramaticamente dentre aqueles que realizou…

Baseado no romance “The Half-Life”, publicado em 2004 pelo co-roteirista habitual da diretora, Jon Raymond, “First Cow” é muito literal em termos sinópticos: fala sobre a primeira vaca a ser trazida para uma região rural em Oregon, na primeira metade do século XIX. A trama do filme pode ser resumida em pouquíssimas linhas, mesmo sendo uma das mais teleológicas de diretora. Afinal, o que realmente importa são os detalhes climáticos, aquilo que deslinda-se nas entrelinhas, à medida que os personagens interagem e conhecem-se melhor…

Logo na abertura, uma epígrafe do poeta inglês William Blake [1757-1827], que associa pássaros a ninhos e aranhas a teias, a fim de estabelecer um paralelismo entre o homem e a amizade. Enquanto macrotema recorrente nos filmes reichardtianos, a amizade é algo que provém um conforto provisório, mas que também deixa em evidência certo sufocamento advindo das convenções sociais a que os partícipes aceitam sujeitar-se. Como praticamente contumaz da noção mais genérica e orgânica de Ecologia, a diretora enxerga as relações de amizade como ostensivamente conflituosas, tal qual verifica-se em “Ode” (1999), “Antiga Alegria” (2006) e “Movimentos Noturnos” (2013), para ficar apenas em exemplos extremos. No entanto, esse diagnóstico aplica-se a qualquer um de seus longas-metragens.

Na abertura de “First Cow”, uma garota que vive na época contemporânea encontra casualmente duas ossadas humanas num parque arbóreo. Num corte tão sutil quanto inusitado, temos uma espécie de ‘flashback’, que explicará a quem pertencem tais ossadas. Porém, quem já viu algum filme da diretora, sabe que ela não apela para os desfechos fáceis e/ou conclusivos, para as explicações meramente justificativas ou teleológicas. Essa intriga inicial – óbvia, no sentido brechtiano do termo – será apenas um ponto de partida emocional para reiterar aquilo que realmente chama a atenção nas situações vivenciadas pelos protagonistas: as condições da proximidade entre eles, que não exclui um homoerotismo deveras freqüente na filmografia da cineasta.

O personagem principal é um órfão que trabalha como cozinheiro para um grupo rude de caçadores de castorídeos. Interpretado por John Magaro, este rapaz é apelidado de Cookie, visto que aprecia cozer biscoitos e tem o sonho de abrir a própria confeitaria. Enquanto colhe cogumelos ou qualquer coisa de que possa alimentar-se, ele encontra um homem nu. Pensa tratar-se de um indígena, mas este antecipa-se em explicar quem é: chama-se King-Lu (Orion Lee) é um chinês que está fugindo da fúria de russos, em razão de ter assassinado um deles. Apesar de ser um imigrante, King-Lu domina não apenas o idioma anglofílico, mas possui um tino comercial acentuado: em breve, converterá Cookie num empreendedor!

Quando descobrem a vaca do título, mantida à solta no pasto de um rico e arrogante administrador-chefe (interpretado por Toby Jones), Cookie e King-Lu resolvem comercializar deliciosos biscoitos de manteiga, que desperta rapidamente a gula e a cobiça dos mineradores e caçadores locais. Por extensão, isso desencadeará alguns problemas: afinal, eles obtêm o leite de maneira ilegal, ordenhando clandestinamente a vaca nas madrugadas, enquanto seu proprietário adormece. E, pouco a pouco, Cookie afeiçoa-se ao bovino, cujo parceiro faleceu no trajeto; A vaca retribui o afeto dele. Isso o denunciará à frente. E, por mais que estejamos revelando muitos dados da trama, isso é o de menos na fruição a esta obra: conforme dito antecipadamente, o que interessa efetivamente em “First Cow” é a conjunção de climas, a perfeita utilização sensorial dos componentes cinematográficos.

Trabalhando com parceiros fiéis, Kelly Reichardt – que é também a montadora de seus filmes – obtém mais uma excelente colaboração do fotógrafo Christopher Blauvelt, que organiza maravilhosos enquadramentos quadriculares, como se deixasse em evidência mui ostensiva as limitações do olhar intermediado por uma câmera, a fim de declarar: “estamos diante de um filme!”. Por mais que a diretora seja eventualmente associada a um certo “neo-neo-realismo”, ela não esconde os artifícios cinematográficos: elabora os seus filmes com um rigor quase bressoniano, porém adaptando-o a um estilo sobremaneira peculiar, do qual a trilha musical ‘indie’ faz parte essencial. Aqui, o belíssimo acompanhamento melodioso está a cargo de William Tyler.

Neste enredo específico, há uma polarização declarada entre a volição ecológica da equipe e os anseios capitalistas de um dos personagens, de modo que a diretora obriga-nos a refletir politicamente sobre as decisões de Cookie e King-Lu, que redundam num desfecho inevitavelmente em aberto: sabemos como tudo aquilo termina, mas não precisamos ver. Da mesma maneira que acontece em “O Atalho” (2010) ou “Certas Mulheres” (2016), em que múltiplas tessituras de destinos são amalgamadas, cabe ao espectador a completude tramática. Trata-se, portanto, de uma das autoras mais valiosas dos últimos tempos!

Fora das relas, o fervor ecológico dos espectadores é suprimido pelas abomináveis decisões governamentais: no caso brasileiro, para aproveitar um lamentável trocadilho, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, declarou – numa reunião malevolente e vexatória da cúpula bolsonarista – que aproveitaria a cobertura incessante da imprensa em relação à pandemia do CoronaVírus para “passar a boiada”. Ou seja, para aprovar de maneira unilateral leis oportunistas e absolutamente devastadoras, contrariando a importância da pasta ministerial que ele assumiu. Recentemente, o ipê foi excluído da lista internacional de espécies vegetais ameaçadas. E esta é apenas uma demonstração imediata de que, se esta corja continuar mais tempo no poder, a tendência ao desmatamento chegará a níveis irreversíveis!

Mas voltemos ao filme, à guisa de tênue consolo. No título desse texto, há uma pergunta, que corresponde a uma das piadas que Cookie dispara durante a narrativa. Resposta ao seu questionamento chistoso: “o lado de fora”. Eis onde as árvores têm mais galhos! Porém, os galhos também quebram. Para saber mais sobre o impacto ambivalente desta blague, vejam este filme arrebatador e merecedor de todos os elogios e láureas que vem recebendo. Kelly Reichardt deve ser melhor conhecida: a coerência de suas obras é uma aula de humanismo – e de talento cinematográfico também!

Wesley Pereira de Castro.

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