Na tarde do dia 19 de fevereiro de 2020, falecia no Brasil o grande cineasta José Mojica Marins, aos 83 anos de idade. Para muitos, seu nome confundia-se com o de seu mais famoso personagem, o coveiro insano Zé do Caixão. Mas a sua vasta filmografia vai além da criação deste ícone magistral do cinema brasileiro. Ou seja, ele realizou obras nos diversos gêneros cinematográficos, do faroeste às pornochanchadas, passando inclusive por uma fase conturbada durante a eclosão do sexo explícito no país, após o fim da censura ditatorial. Mas é mesmo por sua inventividade em relação aos filmes de terror que será merecidamente lembrado…
Coagido pelos produtores a agir de maneira oportunista, a fim de atingir os mínimos requisitos de bilheteria essenciais à viabilização de seus projetos pessoais, José Mojica Marins não raro imbuía seus filmes de cenas demoradas e um tanto gratuitas de nudez feminina. Por causa disso, seus enredos confundem-se com o machismo de seus protagonistas, sobretudo quando avaliamos os erros de apreciação que comumente são destinados à trilogia oficialmente capitaneada pelo Zé do Caixão.
Enquanto personagem, Zé do Caixão surge no clássico “À Meia-Noite Levarei sua Alma” (1964), cercado por uma aura de coincidências que estão longe de serem meros acasos: o cineasta sonhara com o personagem e resolve personificá-lo após complicações envolvendo o ator que fora inicialmente contratado para interpretá-lo. Não obstante ser tachado como vilão, isso ocorre como uma conseqüência praticamente inevitável dos preconceitos generalizados que enfrenta. Trabalhando como coveiro numa cidadezinha do interior, ele faz questão de professar o seu ateísmo (ou melhor, agnosticismo), recusando-se a levar a cabo os costumes religiosos locais. Em plena Sexta-Feira da Paixão, aparece na janela, devorando largos e suculentos pedaços de carne bovina. É massivamente hostilizado por seus vizinhos, mesmo quando salva um garotinho de morrer atropelado. Seu maior desejo é ter um filho, dar continuidade à sua existência terrena, mas sua passiva esposa parece ser estéril. A partir daí, passa a perseguir e estuprar diversas mulheres, o que converte-o no ser demoníaco que surgirá noutros filmes e que eternizou-se no imaginário popular de seus fãs e detratores…
Entretanto, José Mojica Marins esforçava-se para ser lembrado não apenas por este personagem. Tinha várias outras idéias, demonstrava uma versatilidade surpreendente (e, nalguma medida, impraticável) para os padrões limitados – enquanto demarcação produtiva – do cinema brasileiro de gênero E é exatamente esse o ponto de partida de um de seus filmes mais geniais, “Exorcismo Negro” (1974). De supetão, o susto de um casal apaixonado que vê a sua casa invadida por bandidos. Quando estes tentam violentar a bela esposa, esta e seu marido convertem-se em assustadores idosos, com os rostos respectivamente deformados. Percebemos, então, que trata-se de metafilme, justamente dirigido por José Mojica Marins, que é entrevistado logo após as filmagens.
Nesta entrevista, o diretor é confrontado por uma das perguntas mais recorrentes (e mal-intencionadas) de sua vida: “quem é mais importante, José Mojica Marins ou Zé do Caixão?”. Como se fosse possível dissociar um de outro, e vice-versa. Para atender aos propósitos fílmicos, José Mojica Marins, o personagem, responde que ele, o criador, seria o mais importante. Questionam o porquê de ele manter as unhas exacerbadamente crescidas, ao invés de utilizar próteses. “Para assegurar a autenticidade”, insiste ele. Será o pressuposto para uma brilhante persecução entre criatura e criador, num roteiro com múltiplos pontos de fuga horroríficos.
Estafado e sob crise de inspiração, José Mojica Marins aceita o convite para passar o feriado natalino na casa de campo de um amigo. Porém, logo perceberá que a sua família está possuída por espíritos malignos que, numa seqüência atemorizante, demonstrar-se-ão como submissos a uma versão ainda mais demonizada do próprio Zé do Caixão. Um dos mais inspirados exercícios de metalinguagem do cinema mundial foi realizado no Brasil, sob o pretexto comercial de emular o título de uma superprodução hollywoodiana de horror, que fora o arrasa-quarteirão daquela temporada. “Exorcismo Negro” é genial em múltiplos aspectos, portanto.
A fim de não estragar o prazer (ou desprazer, a depender das intensas reações espectatoriais ao festival de gritos e sanguinolência do filme), interrompe-se aqui a descrição sinóptica deste filme e investe-se num clamor recomendativo: vejam “Exorcismo Negro” e valorizem a vasta e magnânima obra deste gênio incompreendido do cinema brasileiro, quiçá mais famoso internacionalmente que em seu próprio país. Além de antecipar uma estratégia narrativa similar à posteriormente adotada por Wes Craven [1939-2015] em relação ao seu personagem Freddy Krueger, José Mojica Marins, em interpretação dupla, comprova a sua eficiência em múltiplas atividades, conforme é requerido por quem torna indissociável suas pretensões artísticas e as paixões mais elementares. Zé do Caixão é um personagem imortal, e seu criador é, sem dúvidas, um dos maiores gênios do cinema brasileiro, inclementemente perseguido pelos asseclas da ditadura militar e pelos continuadores hipócritas dos “bons costumes”. José Mojica Marins chega a ser ingênuo na adoção de algumas estratégias visuais e discursivas. Mas erigiu um ‘corpus’ filmográfico incrível e impactante. Imperfeito, sim; defeituoso, com certeza. Mas sumamente sagaz, criativo e vocacionado. Repetimos: um gênio!



