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“Muito pior é a monocultura de mentes, com a propaganda como agrotóxico!” (a propósito de mais um documentário)

“Muito pior é a monocultura de mentes, com a propaganda como agrotóxico!” (a propósito de mais um documentário)

Nalgum momento de suas atividades curriculares, os estudantes brasileiros de Jornalismo assistem ao documentário “Muito Além do Cidadão Kane” (1993, de Simon Hartog), não obstante este filme ter as suas exibições públicas interditadas em território nacional. Trata-se de uma realização levada a cabo por uma emissora de TV britânica, que demonstra o poderio acachapante das organizações regidas por Roberto Irineu Marinho, herdeiro da Rede Globo de Televisão, o conglomerado midiático mais poderoso do país. No filme em pauta, testemunhamos, através de uma montagem mui eficiente, como as decisões ditadas por esta emissora conseguem interferir até mesmo em situações fortuitas do cotidiano dos espectadores, culminando na escandalosa assimetria do debate político entre os candidatos Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva, nas eleições de 1989. O primeiro foi privilegiado através de recursos técnicos e, afinal, sagrou-se vencedor. Quase trinta anos depois, a História é reapresentada?

Num padrão antitético similar ao dos supracitados estudantes, que, mesmo após a estupefaciente audiência a este documentário, sonham em trabalhar para a referida emissora, por casa do status que ela representa, a TV Globo esforça-se para obnubilar a perseguição que desferiu contra o líder do Partido dos Trabalhadores, novamente concorrendo à presidência do Brasil. Numa entrevista ocorrida em 25 de agosto de 2022, no “Jornal Nacional”, quiçá o noticiário televisivo mais influente do país, foi difundido que o ex-presidente não está em débito com a Justiça Brasileira. E é nesse contexto que “A Fantástica Fábrica de Golpes” (2022 , de Valnei Nunes & Victor Fraga) é lançado!

Fazendo constantes menções ao documentário de Simon Hartog – inclusive, aproveitando várias sequências e entrevistando o produtor John Ellis –, este mais recente filme foi dirigido por dois jornalistas brasileiros que estão radicados na Inglaterra. O objetivo é bastante similar: demonstrar como, ainda hoje, a Rede Globo de Televisão goza de inúmeros benefícios constitucionais, concernentes às leis sobre propriedade cruzada, de modo que, assim, pôde instigar um processo de deslegitimação político-partidária que fez com que a extrema-direita chegasse ao poder. Entretanto, a mesma emissora tenta agora promover o movimento inverso, já que demonstra-se fracamente antibolsonarista, sobretudo depois que começou a ser atacada pelos apoiadores do atual presidente, que referem-se à emissora como “GloboLixo”.

Contando com entrevistados tão diversificados quanto a filósofa Márcia Tiburi, a ex-presidenta Dilma Rousseff, o cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda, o jornalista Glenn Greenwald, a deputada Benedita da Silva e o político inglês Ken Livingstone – além do ativista argentino Adolfo Pérez Esquivel, responsável pelo laudo que intitula esse artigo –, falta ao filme uma voz divergente, que equilibre discursivamente o que é afirmado. Da maneira como as situações são expostas, há uma equiparação em relação àquilo que é criticado, em termos de monotematismo indutivo. O que é corroborado pela locução satírica do próprio co-diretor, Victor Fraga.

Por motivos óbvios, os diretores foram impedidos de utilizar imagens dos programas da emissora investigada, o que foi habilmente contornado por um convite para desenhistas consagrados, que ilustram sequências pontuais. Alguns dos entrevistados assumem que há uma distinção entre o tom cerceador empregado pelos telejornais da TV Globo e as telenovelas, seriados e programas de entretenimento, voltados para a liberalidade dos costumes e para uma parca porém notável integração das ditas “minorias sociais”. O tema da regulação midiática – prometida por vários candidatos políticos, mas nunca cumprida à risca – surge como clamor renitente, acompanhado pelos temores relacionados à Censura, afinal praticada pela própria Globo em situações chocantes, elencadas no documentário, como o desfile de uma escola de samba carioca que foi transmitido sem comentadores – no caso, a Paraíso do Tuiuti, que, em 2018, zombou dos paneleiros* que financiaram ideologicamente o golpe que deflagrou o ‘impeachment’ da então presidenta Dilma Rousseff, em 2016.

Tendo como elemento de concatenação narrativa um processo de fabricação de panelas, que pretende metonimizar os panelaços promovidos pelos manifestantes populares, este filme faz com que reflitamos sobre a apropriação de símbolos nacionais (a camisa da Seleção Brasileira de Futebol, por exemplo) pela direita política. Num viés distinto, isso foi antecipado por uma canção de Chico Buarque, “Pelas Tabelas”, que ele próprio hesita em cantar hodiernamente, malgrado as panelas estarem sendo novamente batidas pelos esquerdistas, em oposição ao bolsonarismo, que está sob flagrante crise de credibilidade, mas ainda representando um grande perigo para quem acredita na liberdade de expressão. Nos créditos finais, a banda Francisco, el Hombre enceta uma emocionada versão de “Roda Viva”, enquanto os nomes dos apoiadores do filme são apresentados na tela. O debate segue acontecendo do lado de fora da sessão!

Vale ressaltar que o lançamento de “A Fantástica Fábrica de Golpes” nos cinemas, nesse momento, é deveras oportuno, visto que antecede o primeiro turno das eleições presidenciais, programado para ocorrer em 02 de Outubro de 2022, caso não ocorra logro ditatorial na celebração do bicentenário da independência do Brasil em relação a Portugal, no dia 07 de setembro do corrente ano. A dependência quanto às decisões dos Estados Unidos da América e dos artífices do neoliberalismo econômico continua firme, entretanto, o que é enfatizado corajosamente pelo filme. O elogio que o Jornal O Globo fez ao golpe militar de 1964 é exposto em momentos-chave – vide a leitura do editorial de 01 de abril do fatídico ano e de manchetes entusiásticas subsequentes –, demonstrando que, para quem exerce a manipulação noticiosa, a História permanece cíclica, segundo os interesses de seus controladores empresariais. Neste sentido, temos uma certeza premonitória: este documentário há de ser também estudado pelos alunos vindouros de Jornalismo. Que eles não executem, enquanto exigência corporativa da práxis profissional, algo que faz tanto mal à democracia. Eis o nosso anseio crítico!

*Manifestantes que produzem ruído com objetos metálicos, tais como panelas, como forma de protesto.

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