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Paradoxo metonímico da crítica cinematográfica contemporânea: pode-se ser contra o processo e a favor de seus produtos?

Paradoxo metonímico da crítica cinematográfica contemporânea: pode-se ser contra o processo e a favor de seus produtos?

Em 1947, os pesquisadores alemães Theodor W. Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) escreveram um artigo fundamental sobre as contradições apreciativas do fenômeno hollywoodiano, num texto que cunhou um conceito, “A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”. Ao analisarem a estandardização como estratégia bem-sucedida do ‘star system’ e do ‘studio system’, os autores afirmam: “a competência e a perícia são proscritas como arrogância de quem se acha melhor do que os outros, quando a cultura distribui tão democraticamente seu privilégio a todos. Em face da trégua ideológica, o conformismo dos compradores, assim como o descaramento da produção que eles mantêm em marcha, adquire boa consciência. Ele se contenta com a reprodução do que é sempre o mesmo”. Temos aqui um excelente ponto de partida!

Uma das notícias mais reproduzidas na última semana diz respeito à exorbitante ocupação de salas exibitórias levada a cabo pela estréia do filme “Vingadores: Ultimato” (2019, de Anthony & Joe Russo). Difundida como a culminação do “Universo Cinematográfico Marvel” – iniciado em 2008, com o lançamento do primeiro filme sobre o personagem Homem de Ferro – esta superprodução tomou de assalto mais de 80% das salas de cinema brasileiras, o que engendrou um necessário debate contra a nova cartelização dos arrasa-quarteirões de uma Hollywood em crise narrativa. Neste debate, entretanto, poucas foram as vezes em que o filme em pauta foi enfrentado frontalmente: enxergado como epítome de um vilanaz sistema que reinstaura o truste entre produção, exibição e distribuição, “Vingadores: Ultimato” foi comumente excluído dos textos críticos como tal. Motivo principal: temia-se terrivelmente a revelação de ‘spoilers’, informações tramáticas que supostamente estragariam o prazer de quem ainda não viu o filme. Decorrência imediata: pré-estréias com ingressos esgotados!

Noutras palavras: apesar de ser absolutamente aberrante a exibição de um único filme na quase totalidade dos cinemas brasileiros, ainda era difícil conseguir ingressos. As salas estavam lotadas, o impulso de divulgação voluntária a partir dos fanáticos pela cinessérie demonstrava que o maior problema é de ordem colonizatória. A espectatorialidade contemporânea segue afinada ao que fora denunciado pelos pesquisadores frankfurtianos: “o que é novo na fase da cultura de massas em comparação com a fase do liberalismo avançado é a exclusão do novo. A máquina gira sem sair do lugar. Ao mesmo tempo que já determina o consumo, ela descarta o que ainda não foi experimentado porque é um risco”. Nenhum ‘spoiler’ seria capaz de estragar o óbvio: ao final do filme, um estereótipo vendável de Bem vencerá uma caricatura sedutora e propositiva do Mal. Vitória do Capitalismo, em suma.

Conforme era esperado, “Vingadores: Ultimato” quebrou recordes em seu final de semana de estréia. A bilheteria mundial já ultrapassou o bilhão de dólares. Espectadores vêm e revêm o filme, além de exortá-lo diuturnamente, em resenhas espirituosas sobre o júbilo decorrente do prazer de testemunhar “o fim de uma saga”. E, enquanto isso, a crítica especializada permanece refém da interdição previsível de ‘spoilers’ pontuais. Como se não houvesse uma trama a ser comentada no filme, mas uma mera roleta em que peças de um jogo são sacrificadas a fim de que o entrevero chegue a um desfecho (não definitivo). “Eis aí a doença incurável de toda diversão: o prazer acaba por se congelar no aborrecimento, porquanto, para continuar a ser um prazer, não deve mais exigir esforço e, por isso, tem de mover-se rigorosamente nos trilhos gastos das associações habituais”…

Vamos ao filme: “Vingadores: Ultimato” não é ruim. Possui lacunas intragáveis em seu roteiro repleto de viagens no tempo, mas preza por uma composição rigorosa de cada um de seus personagens. O Homem de Ferro é exposto em sua faceta mais digna, Thor aparece deformado pela bebedeira depressiva, Hulk empresta seus caracteres monstruosos à sexualização de seu tímido alter-ego, Viúva Negra reage dolorosamente ao luto prolongado, Capitão América demonstra-se cada vez mais sensível, Thanos é um bode expiatório verborrágico. E isso entretém, efetivamente diverte. Pois são clichês que coadunam-se àquilo que estamos acostumados no trato diário. O tema dominante no filme é a família, Aparelho Ideológico de Estado [AIE, em sua acepção althusseriana] favorito de qualquer público. Não se pode julgar quem aprecia tanto o filme: ele entrega exatamente o que promete. O malogro advém da causa motora desta montanha-russa de sentimentos programados. E é por isso que o artigo de Theodor Adorno e Max Horkheimer continua tão inclementemente atual!

Se, por um lado, o roteiro de Christopher Markus e Stephen McFeely é lacunar e repleto de firulas científicas (apresentadas como “paradoxos”), por outro, o filme é tecnicamente irrepreensível: efeitos especiais excelentes, cenas de ação muito bem coreografadas, elenco magistralmente entrosado. Nos créditos finais, os atores exibem suas próprias assinaturas cursivas, demonstrando o quão benfazeja é a composição dos personagens – e também de alguns dramas acessórios envolvendo-os. Mas fica a suspeita de que a história não terminará aqui: a era da convergência clamará por diversos ‘spin-offs’, continuações transversais de algo que pode recomeçar a qualquer momento, visto que o mote da viagem no tempo autoriza qualquer reversão. A vitória super-heróica é a da ideologia estadunidense por si mesma: a dominação hollywoodiana instaura um neo-colonialismo subserviente, ao qual se paga com o prazer. A saga está completa?

Outra notícia bastante reproduzida na última semana foi a decisão do presidente brasileiro Jair Bolsonaro em extinguir os financiamentos públicos para o ensino de Filosofia e Sociologia no país. E, por menos incrível que se pareça, uma e outra notícia estão diretamente relacionadas. Retornemos ao pensamento adorno-horkheimeriano: “o poder da indústria cultural provém de sua identificação com a necessidade produzida, não da simples oposição a ela, mesmo que se tratasse de uma oposição entre a onipotência e a impotência. A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio”. E isso independe de “Vingadores: Ultimato” ser ou não um mau filme, mas tem a ver diretamente com o espaço que ele ocupa, com o que é silenciado quando fala-se dele, por bem ou por mal. Contrabalancemos esta onipresença discursiva, portanto. Enquanto ainda podemos…

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