Depois de provar que a comunidade lusófona foi, no Brasil, objeto de forte invisibilização (por ausência) nos primeiros 20 anos da CPLP nos dois maiores jornais brasileiros (Folha de S.Paulo e O Globo), investiguei os rastros que ficaram desse movimento brasileiro de apagar os vínculos identitários com os demais países e suas lusofonias. Os vestígios em forma de notícias se transformaram em resquícios concretos, potências que ajudam a entender o porquê do Brasil ter tornada invisível nossa comunidade lusófona.
O que estou a dizer é que as raras notícias encontradas nesses dois jornais são resultado de uma narrativa com torções de palavras e de silêncios a configurar a experiência do invisível. Nessas condições, apresento um outro modo de invisível, agora, uma invisibilização por presença, ou seja, não é mais apenas a ausência quase que completa, mas uma presença que também impõe o invisível. Para isso, articulamos o olhar crítico sobre a história, de forma a empregar valor a esses indícios (Ginzburg, 1989), e fazer conexões semióticas diante dos rastros, considerando na análise a visualidad, a mirada e a imagen (Abril, 2013).
Vejamos alguns exemplos: os registros dos dois jornais em datas próximas à criação da CPLP em 1996 foram, logo de saída, reveladores dessa presença para criar a ausência. A comunidade lusófona, antes mesmo de ter sua entidade criada, já era tratada na Folha de S.Paulo e em O Globo como um fora de Nós, sem qualquer vinculação histórica e identitária. A comunidade era, para esses jornais, o Outro negro, africano, pobre e distante de Nós, portanto, um objeto indesejado. A sutil exceção era Portugal, percebido na perspectiva econômica, como janela de acesso à Europa, apenas uma passagem ao mundo civilizado.
Os jornais até enxergavam a CPLP, mas forçavam para vê-la como “bloco” econômico “pobre e fraco”, jamais como uma comunidade. Como bloco, o Brasil poderia até se aproximar, mas para estabelecer uma relação de mando sobre os países da África lusófona e o Timor-Leste. Em alguns registros, a CPLP foi uma moeda, “um ativo” de pouco valor que o Brasil agregava para si e que podia negociar com potências globais (Folha, 14/07/1996, p. 6). Esse foi nosso cartão de visita geral: Nós, civilizados ao lado de Portugal e à frente e bem à distância dos demais países da CPLP. Esses últimos, os Outros, mesmo vestidos como gente, tinham pés descalços – a cor da pele – para que não se esquecessem de sua condição de subordinados.
A entrevista do presidente brasileiro Fernando Henrique bem na véspera da criação da CPLP – aquele senhor “que morou muitos anos fora” –, também foi um nítido cartão de visita do Brasil nessa comunidade e um sinalizador para os jornais e para Nós (Folha e O Globo, 16/07/1996). Os textos da Folha e de O Globo sugerem que negros e pobres, caipiras e atrasados, devem ter sua mentalidade “criolla” apagada para que possam, na lógica do presidente FHC e reproduzida em destaque por esses dois jornais da Casa Grande, acertar os passos com a globalização, com o moderno, com o mundo “encantado” de Fernando Henrique.
Na relação entre Brasil e as lusofonias a ideia de reconhecimento, de comunidade e, muito menos, de nossa inserção na CPLP. Ao contrário, os vestígios estão ali, visíveis, para que sejam vistas as diferenças e as relações entre superior e inferior, civilizado e primitivo, de mando e obediência, um jogo entre a visibilização racista e classista que criminaliza o Outro e a invisibilização também racistas e classista que impede e apaga o reconhecimento e o pertencimento a uma mesma comunidade.
Na investigação até emergiram rastros de parentesco entre Brasil e África, mas essa foi uma ação para marcar as diferenças, principalmente ao destacar o peso econômico, reforçando as relações capitalistas e neocolonialistas entre Nós, o dominador/dominado. No Governo Fernando Henrique, os africanos da CPLP foram identificados como os “primos pobres” (Folha, 18/07/2000) e recebem o “perdão de dívidas”. Os jornais criticam essa ação como “prejuízo à economia brasileira”, mas a justifica porque os países pobres da CPLP terão a obrigação de votar em seu “primo rico” (Brasil) para o Conselho de Segurança da ONU.
Nas duas décadas investigadas fica expressa a profunda inversão da lógica histórica de credor/devedor entre Brasil e África. Na verdade, somos Nós os que têm dívidas para com África, e não o contrário. Essa condição de denominação e de parentesco dos africanos lusófonos como “primos” também aparece no Governo Lula apenas para reforçar que Nós somos os ricos e que o trânsito permitido será somente de Nós para Eles, e não o inverso: “Lula chega à África no papel de primo rico” (O Globo, 20/07/2004, p. 8), foi o título da notícia.
Em 2003, logo no início do Governo Lula, encontramos um registro que sintetiza o ápice dessa invisibilização por presença da CPLP em Nós. Esse rastro emerge para denunciar a nítida opção pelo apagamento dessa comunidade. Sete anos depois da institucionalização da CPLP e de poucas notícias sobre ela, a Folha (12/07/2003, p. 10) destaca que o presidente Lula estava propondo criar uma comunidade de países de língua portuguesa. A CPLP já existia, mas era invisível no Brasil. Essa notícia é uma presença expressiva a confirmar a ausência, o invisível. A materialidade nela é a própria torção das palavras e dos silêncios a denunciar a invisibilização.
Os rastros de notícias sobre a comunidade no Governo Lula são fundamentais para entender esse modo de invisibilização por presença. Diferentemente dos registros do período de Fernando Henrique, em algumas notícias com Lula emergiram filigranas nas falas diretas dele que apontavam para uma vinculação identitária entre Brasil e África. Lula justificava muitas de suas ações com os países daquele continente como um resgate sobre a escravidão e a dívida histórica que o Brasil tem para com África. Entretanto, essas citações curtas do presidente eram engolidas pela angulação econômica (“bloco”) que os dois jornais buscavam imprimir nas poucas notícias sobre a CPLP.
Na Folha e em O Globo, Lula foi festejado, de modo especial no início do seu governo, como um agente de grandes empresários brasileiros que o presidente levava em sua comitiva para fazer “bons negócios” na África. Essa é uma ação de colonialidade alinhada à lógica dos valores desses jornais, que prevê a expansão e liberdade do capital, a exploração e o domínio dos “fracos”, com o uso da retórica e da farsa do desenvolvimento dos países pobres. Ao insistir em falar em escravidão e dívidas históricas, o discurso de Lula foi reduzido a poucas frases e tratado pelos jornais como de fundo “emocional”, afetivo (Folha, 03/11/2003, p. 4), sem amparo na razão.
Todavia, algumas ações do Governo Lula no sentido de estabelecer uma relação externa Sul-Sul concretizaram-se, a exemplo de abertura de embaixadas nos países da África, da introdução da disciplina História da África no ensino no Brasil, das cotas raciais, da criação da universidade para alunos da CPLP, do envio de professores ao Timor-Leste, do imposto zero aos produtos angolanos, entre outras. Essas decisões possibilitavam, mesmo que muito timidamente, pensar em uma possível aproximação identitária entre Brasil e África e na própria ideia de comunidade.
Entretanto, para a Folha de S. Paulo e O Globo, que são vozes político-narrativas da elite nacional brasileira, o Governo Lula forçava uma linha que para eles deveria ser mantida intransponível entre Nós e o Outro, a própria comunidade. Assim, esses jornais ampliaram em suas páginas as desqualificações e as invisibilizações dessa comunidade e dos países africanos lusófonos. Agora, para eles, era impensável e inaceitável o Brasil inserir-se, mesmo como líder, entre os países pobres da África. Se durante o Governo FHC a invisibilização da CPLP era motivada por questões econômicas (bloco pobre) e racistas (crioulo), no Governo Lula a justificativa da ausência era a insistência do presidente em aproximar-se dessa comunidade alegando dívidas históricas e motivações identitárias.
Por isso, no decorrer de duas décadas, nas notícias sobre a CPLP nesses dois jornais encontramos palavras-chave que se repetem e que se acentuaram no Governo Lula: pobreza, miséria, doenças, tráfico de drogas e armas, corrupção, golpes, em uma nítida referência também identitária de medo, perigo, contágio, rejeição, apagamento e exclusão. Em um segundo momento no Governo Lula, o peso econômico nas notícias cedeu espaço a essas associações que criminalizam as ideias e ações do governo em relação à África.
Assim, os jornais sugerem uma experiência jornalística em que os leitores podiam usar a notícia como um “repelente” para imunizar-se, proteger-se, rejeitar e combater a aproximação com essas “más companhias”, como foram tratados os africanos em editorial de O Globo (06/07/2010, p. 6). Para ampliar e reforçar essa repulsa, os dois jornais associam diretamente o presidente Lula aos “ditadores” na África: “Lula desfila em Rolls-Royce ao lado de ditador” (O Globo, 28/07/2004, p. 12); “Lula se reúne com ditador africano para selar acordo” (Folha, 05/07, 2010, p. 9); “Ditador respeita democracia e direitos humanos, diz Lula” (Folha, 06/07/2010, p. 10); “Bloco lusófono incluirá ditadura africana” (Folha, 12/07/2014, p. 14).
Destacamos que nos 20 anos de CPLP, a maioria dos presidentes dos países africanos não apareceu com falas diretas nesses dois jornais, à exceção de Joaquim Chissano e de José Maria Neves, respectivamente de Moçambique e Cabo Verde. Além da ausência dos demais, as falas desses presidentes serviram para que os jornais reforçassem as associações dos seus países e da África lusófona com drogas, pobreza, miséria, doenças, corrupção, ditaduras. Nesse caso, a presença visível do Outro serve para confirmar e criminalizar o Outro. Nessa mesma categoria, verificamos um elevado número de entrevistas com os presidentes portugueses. Os dirigentes europeus tiveram mais espaço que os demais na Folha, e principalmente em O Globo, o que ratifica uma lógica editorial pautada em valores políticos e econômicos eurocêntricos.
Nas notícias com os presidentes e os primeiros-ministros portugueses, O Globo e a Folha de S.Paulo enfatizaram ações que poderiam beneficiar os empresários brasileiros que investissem em Portugal. A CPLP e os países africanos, nessa ótica, estiveram completamente ausentes. Entretanto, eles logo surgiram quando os jornais se lembraram das aproximações do Governo Lula com a África. A CPLP e os países africanos eram o “problema” nas entrevistas com os dirigentes de Portugal. Existiu uma nítida cobrança, em O Globo e na Folha para o combate à ideia de livre circulação no espaço lusófono. Na prática, os jornais buscaram exercer a função de construtores e vigilantes de muros entre Brasil e África, e de alguma ponte econômica entre Brasil e Portugal. A mobilidade foi submetida ao critério econômico para brasileiros e portugueses, e reacendeu vivamente o racismo em relação aos africanos, em um debate marcado profundamente pelas heranças coloniais.
Talvez esteja aí a questão-chave na compreensão do regime de visibilização da CPLP nos dois jornais brasileiros: o medo do livre trânsito do Outro, construído para ser percebido como negro e pobre, africano e timorense entre Nós. Nesse quesito, ampliaram-se as narrativas de medo, repulsa, de criminalização e o combate para que esse Outro fique confinado onde está, que não se aproxime.
Dirigentes portugueses asseguraram nas entrevistas que imposições, limitações, restrições à circulação de africanos não se alterariam, mas que os brasileiros seriam bem tratados e teriam “Status especial” (O Globo, 06/08/2002, p. 30). Todavia, isso não se aplica para todos brasileiros, apenas os que têm condições de investir em Portugal seriam bem-vindos. Lembremos que em conferências da CPLP, o tema da mobilidade entrou timidamente na pauta, mas os dois jornais trataram dessa temática como caso de polícia e o motivo estava explícito: possibilidade de livre circulação dos “africanos”.
Nos dois próximos e últimos textos de uma longa sequência de pequenos artigos, avançaremos no porquê da construção de uma lusofonia invisível no Brasil.
REFERÊNCIAS
Abril, G. (2013). Cultura visual, de la semiótica a la política. Madrid: Plaza y Valdés.
Ginzburg, C. (1989). Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras.
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