Por causa da necessidade de distanciamento social, a comemoração dos cinqüenta e um anos do levante de Stonewall precisou ser predominante cibernética, virtual. As tradicionais paradas ‘gays’ foram adiadas, mas não suprimidas: cada qual à maneira, os militantes favoráveis às mais diversas formas de amor realizaram as suas celebrações particulares, que somam-se num esforço coletivo contra a onda de extrema-direita política que vem alastrando-se preocupantemente ao redor do mundo. Inúmeros preconceitos são defendidos de maneira oportunista sob a égide do “politicamente incorreto”, convertido em estratégia discursiva de quem desrespeita as liberdades alheias…
Como era de se esperar, os panfleteiros do ódio aproveitaram-se da data histórica que é o dia 28 de junho para disseminar ironia: o quarto filho do presidente brasileiro Jair Messias Bolsonaro, por exemplo, utilizou a sua conta no Twitter para reproduzir uma manchete do jornal Folha de São Paulo, onde lia-se “aceitação da homossexualidade no Brasil cresceu de 61% em 2013 para 67% em 2019”. Comentário de Jair Renan: “Bolsonaro conseguiu”. É necessário comentar algo, dar publicidade a esse tipo de provocação? Talvez não. Outros recursos são muito mais seguros e proveitosos.
Dentre estes recursos, convém enxergar a luta contra a homofobia como algo eminentemente orgânico, que associa-se inevitavelmente às lutas contra a misoginia, o racismo, o desemprego e outras chagas longevas da sociedade. E, nesse sentido, a audiência ao longa-metragem catarinense “Pazúcus: A Ilha do Desarrego” (2017, de Gurcius Gewdner) é uma sugestão atípica porém deveras inspirada: em seu cabedal de imundícies, o filme revela muito sobre aquilo que corrói-nos nacionalmente, num viés extrema e propositalmente tosco e metafórico!
Continuação direta do curta-metragem “Bom Dia, Carlos” (2015) e preqüência de outro filme ainda a ser realizado, “Pazúcus: A Ilha do Desarrego” desrespeita todas as regras narrativas possíveis, incluindo aquelas que atrelam-se às convenções limítrofes de um alegado bom gosto: é um filme feio, repleto de defeitos, esculhambado, confuso, irregular, porém genial!
Logo na abertura, um anúncio: o filme servir-se-á de técnicas subliminares, de modo que não seria recomendado a grávidas e epiléticos. Em seguida, uma citação não identificada (que, mais tarde, presumimos ser do seu realizador): “quando o mundo acabar, vou comer as minhas frutas”. Vemos, então, o romance entre um casal de monstros ser interrompido por uma perseguição detetivesca. Cada um dos planos é filmado num filtro cromático diferente, o que talvez sirva como referência direta aos estilos de Vera Chytilová e Oliver Stone, que utilizaram este mesmo efeito visual sob diferentes intenções. Os créditos finais confirmam o primeiro caso – e a lista de homenagens é enorme!
Mas voltemos ao que pode ser forçosamente interpretado como uma linha tramática neste filme: um rapaz de nome Carlos (Marcel Mars) é atormentado pelas vozes assombrosas de suas fezes, que desejam instalar-se de maneira definitiva em nosso mundo. Paralelamente, este personagem é perseguido pelo doutor Roberto (também vivido por Marcel Mars), seu psicótico psiquiatra, que nutre uma obsessão doentia por ele. Em busca de saciar o seu lampejo homicida unilateral, o médico estraçalha diversos transeuntes, enquanto Carlos vagueia atormentado pelas ruas de Florianópolis, sentindo uma vontade compulsiva de defecar. Ocorre que, ao fazê-lo, os monstros insaciáveis que habitam em seu sistema digestivo instalarão o pânico apocalíptico na bela paisagem praiana que serve de cenário ao filme, e que advém da mistura de vários lugares, incluindo a Austrália e um parque florestal nos Estados Unidos da América.
Apesar de sua linearidade tramática, o parágrafo acima não é convertido em imagens simples ou facilmente decodificáveis: muito pelo contrário. Algumas seqüências são enormes e aparentemente sem função imediata (como o longo percurso de dr. Roberto num supermercado) e outras são intencionalmente estapafúrdias, como as aparições gritantes do casal Omar (o próprio Gurcius Gewdner) e Oréstia (Priscilla Menezes). Esgoelando-se cronicamente em quase todas as suas aparições, eles vinculam imediatamente a atenção do espectador a um chamariz recorrente dos filmes realizados pelos cineastas marginais brasileiros, prontamente evocados nas declarações de amor que constam dos créditos finais. Ou seja, nomes como Carlos Reichenbach, Maurice Capovilla, Petter Baiestorf e José Mojica Marins são reverenciados ao lado de Christoph Schlingensief, Roger Corman, John Waters, Andrzej Zulawski, Lucio Fulci, Dusan Makejev, Shuji Terayama, Bruce LaBruce e tantos outros. E a contribuição inspirada de cada um deles é instantaneamente percebida no filme, para quem os conhece.
Além de ser um deleite cinefílico indigesto, “Pazúcus: A Ilha do Desarrego”, em sua pletora de berros, faz-nos refletir sobre a urgência reativa frente àquilo que nos causa repulsa, ódio ou medo (ou tudo junto, como ocorre em relação ao bolsonarismo). Numa situação brilhantemente intercalada – e que afetará os personagens até o final do filme – Omar e Oréstia deparam-se com entes naturais destruídos que os imputará um desalento extremado: um pato morto, no caso dele; um ovo quebrado, antes adotado como filho, no caso dela. De alguma forma, choramos junto a Omar, em cada “coitado do patinho!” que ele profere de maneira altissonante, por mais que, eventualmente, recorramos ao riso nervoso em relação à originalidade neo-marginal com que estas seqüências são filmadas… Originalidade implacável, aliás!
Abundante em sangue, vômitos e merda, este filme sumamente escatológico encontra um alento sexual e salvacionista na aparição da entidade desnuda Deusa de Pazúcus (Lígia Marina), que assume as funções de uma Iara sulista, no afã por redimir Carlos da destruição que ele causou, involuntariamente. Ao término, há uma dialética entre “o fim do mundo” e “um mundo sem fim” na narração, que pode servir, enquanto corruptela exegética, a uma descarga motivacional para quem sente-se amplamente oprimido pelas indicações de toxicidade comportamental mencionadas na extensão desse texto. O incômodo extremado que advém das superposições vocais de Marcel Mars ou da precariedade ostensiva dos figurinos e maquiagem obriga o espectador a não imergir numa mera hipnose fílmica e, como tal, transladar para a sua realidade possível de ação aquilo que a obra estimula. E é assim que a organicidade discursiva instala-se: a partir da consciência cotejada das próprias perturbações. Filmaço. Resistamos!
5 respostas
ONDE ESTÁ DISPONÍVEL?
Disponibilizado gratuitamente, pelo próprio diretor, até dia 05 de julho de 2020:
Aproveite(m)!
O ‘link’ sumiu, por isso, tive que disfarça-lo desta maneira!
vimeo (ponto) com (barra) dezoito-924-zerozero-86
Não é fácil achar a informação correta. Mesmo sendo na
internet precisa analisar antes se está correto. Obrigado e
compartilhei no facebook.