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O que resta da inspiração quando “o tempo voa de viagem econômica”?

O que resta da inspiração quando “o tempo voa de viagem econômica”?

Não obstante ser um dos cômicos cinematográficos mais geniais de todos os tempos, o norte-americano Woody Allen teve problemas crônicos para ser financiado recentemente. Conhecido por lançar praticamente um filme por ano, ele viu seu mais recente “Um Dia de Chuva em Nova York” (2018) ser engavetado em vários países, além de praticamente não ser lançado em sua nação natalícia. Motivo: as acusações de que o ator, diretor e roteirista teria abusado sexualmente de seus filhos engendrou o que atualmente é conhecido como “cancelamento” midiático”. Ou seja: pelos pecados e/ou crimes de que é acusado na esfera pessoal, as obras deste artista devem também ser defenestradas. De fato, uma e outras estão relacionadas?

No caso alleniano, a resposta a tal questão é mais do que dúbia. Afinal, seus filmes são marcados por situações autobiográficas e por decalques imitativos nos comportamentos de seus protagonistas. Porém, em sua confessada devoção felliniana, Woody Allen também dedica-se às “lembranças inventadas”. E respeita a plurivocalidade dos personagens em seus filmes: nem sempre concorda com o que eles dizem ou fazem, mas não retira-lhes o direito à manifestação conflituosa e aos inevitáveis dilemas existenciais derivados. Ou seja, este autor é brilhante!

A despeito dos elogios reiterados, “Um Dia de Chuva em Nova York” revela-se como um dos mais fatigados filmes do diretor: quiçá pela demora entre a sua feitura e o seu lançamento, ele soa negativamente anacrônico em muitos aspectos. Tanto que, sempre que um telemóvel toca, a atmosfera imersiva é prejudicada: a crítica autoindulgente aos preconceitos e bonomias da ‘intelligentsia’ nova-iorquina é deveras preguiçosa e repetitiva. São poucas as situações realmente dignas de menção neste roteiro, que reaproveita chavões e referências artísticas de outros filmes. Dá para rir, evidentemente. E emociona também. Mas o conjunto é um tanto desenxabido.

Na trama, acompanhamos os caprichos de um insuportável protagonista indeciso (interpretado pelo competente Timothée Chalamet, aqui num momento menos inspirado), que estuda numa universidade do interior e resolve passar um final de semana em Nova York, com a sua namorada aspirante a jornalista (Elle Fanning, ótima). Convidada a entrevista um cineasta em crise criativa (Liev Schreiber), ela torna-se o vértice nodal de um losango platônico que também possui Jude Law e Diego Luna como componentes. Até que, antes do final, adivinhamos como tudo termina – e previsibilidade romântica, definitivamente, não é o maior problema deste filme!

No afã por esconder-se do exibicionismo social e artístico de sua mãe riquíssima (Cherry Jones), o protagonista – de nome Gatsby Welles, duplamente citacional – deambula por áreas menos classudas da cidade, onde reencontra uma ex-cunhada adolescente, vivida com certo carisma pela cantora Selena Gomez. É óbvio que se (re)apaixonarão. Mas diversos quiproquós tornarão dificultosa a consecução deste amor: Gatsby é flagrado por tios num museu, que obrigam-no a comparecer a uma festa mui requintada, onde sua mãe far-lhe-á uma confissão marcante, que configura o melhor instante do filme. Uma prova definitiva que, quando imiscui a comédia de erros com a mais pungente dramaticidade, Woody Allen acerta em cheio. Porém, o dandismo referendado dos personagens é pouco defensável fora das telas. A antipatia do protagonista é realmente difícil de suportar – e, por extensão, insuficiente enquanto voto de alteridade requerido para que torçamos por ele…

As confusões em que Ashleigh, a namorada interiorana porém também muito rica de Gatsby, envolve-se são divertidas em seu acúmulo de boas intenções profissionais – vide a ótima participação de Rebecca Hall como a esposa adúltera de um roteirista incompreedido – mas costuradas de maneira irregular no roteiro, que é bastante preguiçoso, repete-se. As marcas registradas do diretor demonstram-se inautênticas, depois do verdadeiro jorro de renovação que atendeu pelo nome de “Roda Gigante” (2017), no ano imediatamente anterior. Uma pena.

Repetindo a sua colaboração com o fotógrafo Vittorio Storaro, os efeitos imagéticos de cariz crepuscular demonstraram-se supérfluos na maior parte de sua aplicação. Tecnicamente, “Um Dia de Chuva em Nova York” não faz jus às expectativas depositadas em relação ao retorno do diretor à sua cidade-natal, depois de filmar em vários países da Europa e noutras cidades dos EUA. Ao zombar dos preconceitos classistas de seus convivas e ao dotar seus personagens de dotes privilegiados em mais de um aspecto – vide a destreza de Gatsby nos jogos de pôquer e ao piano – Woody Allen não conseguiu impor-se firmemente aos votos de “cancelamento” que quiseram aplicar-lhe. “Um Dia de Chuva em Nova York” está longe de ser um filme ruim, mas faz com que até mesmo seus fãs mais contumazes desconfiem dos méritos vindouros do projeto nomeado “Rifkin’s Festival”, com enredo ainda desconhecido e com previsão de lançamento para 2020. Isso se ele não for sabotado produtivamente como foi em 2019 – não sem ter culpa, infelizmente.

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