Esse texto é parte de uma sequência onde estamos a revelar semanalmente as marcas presentes em 20 anos de publicações nos dois maiores jornais brasileiros (Folha de S.Paulo e O Globo) sobre a comunidade lusófona no Brasil. Essa investigação, no fundo, denuncia a invisibilização da lusofonia em terras brasileiras.
Um dos episódios em que fica nítido um regime de (in)visibilização presente para apagar a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) é o do acordo dos países sobre a ortografia. Nas notícias em torno da unificação da escrita, os povos da África lusófona, do Timor-Leste e das demais regiões sequer foram lembrados como falantes, escritores, pensadores. As notícias em O Globo e na Folha de S.Paulo sobre esse acordo trataram apenas de Brasil e de Portugal, envolvendo as academias de letras e os intelectuais desses dois países.
Angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos, são-tomenses, guinéu-equatorianos e timorenses não apareceram nos registros desses dois jornais quando o assunto foi o acordo ortográfico. No entanto, na medida em que esse acordo não se confirmava, que Brasil e Portugal não se encontravam para unificar o modo de escrever, a Folha e O Globo passaram a responsabilizar os povos da África lusófona por esse fracasso. Começava a aparecer “o africano”, o problema visível, o falante de um “português fraco” (O Globo, em 15/03/2008).
Nesse episódio, mais uma vez emerge visível o Outro ignorante, miserável, o perigo a ser combatido. Ele sempre esteve em todas as notícias nesses jornais sobre os conflitos que envolveram os países da África e o Timor-Leste nesses 20 anos da CPLP, com o detalhamento de golpes de Estado, e lembravam-se rotineiramente que esses países eram pobres, dirigidos por ditadores e corruptos, envolvidos com tráfico de drogas e armas, e que possui uma população doente (Aids, Ebola, Malária). A Folha de S.Paulo e O Globo não esqueceram de enfatizar que essas nações eram da comunidade lusófona, da CPLP. Esse é um processo que chamei de indiferença ativa, ao lembrar o que aconteceu com a luta pela independência do Timor, e com as crises políticas em Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Essa indiferença tentava disfarçar qualquer possibilidade de traço identitário entre Nós e o Outro, ao mesmo tempo em que exigia nossa repulsa e combate à aproximação com esses países.
Em nosso percurso, analisamos que apenas na categoria de notícias de Cultura existiram alguns raros vestígios em que a associação miséria, crime, tráfico de droga, ditadura e países africanos lusófonos não esteve tão visível. Algumas notícias, mesmo pontuais e encravadas em meio a textos mais elaborados nos cadernos de Cultura, chegaram a lembrar da escravidão e da dívida histórica que temos com África (Folha, 13/03/2000, p. 10). Por meio de incomuns rastros nas notícias de Cultura enxergamos que, mesmo timidamente, existiram denúncias da indiferença, da ausência, da invisibilização da comunidade lusófona no Brasil.
Entretanto, os jornais sempre buscaram ancorar essas raras reflexões do campo cultural, geralmente realizada por intelectuais, como uma análise histórica de um passado distante e apartado de Nós, com motivação afetiva e sem qualquer implicação política, social e econômica. Esse foi o mesmo tratamento dado às falas do presidente Lula ao convocar as identidades. Em resumo, a dimensão da visualidad no regime de visibilização dos dois jornais, e analisada por meio dos rastros nas notícias em seis categorias (Presidente Fernando Henrique, Presidente Lula, Presidentes Diversos, Acordos Institucionais, Conflitos, Cultura) possibilitou perceber uma presença visível que faz falar e mostrar mais das ausências.
A coletânea de vestígios publicados em 20 anos constituiu-se em um objeto que nos olha e nos cobra uma ação narrativa para dizer do invisível que está ali, com vários minutos de silêncio. Por isso, na dimensão da mirada, o primeiro aspecto a destacar é a construção de um olhar para a ausência, uma ausência do Brasil como integrante da comunidade lusófona, a exemplo dos registros em Conflito e Cultura; ausência pontual dos “africanos” no acordo ortográfico; ausência da própria comunidade ao noticiar, em 2003, a “nova criação” da CPLP, que já tinha sete anos de instituída. Emergiu também a mirada de indiferença do Brasil para com a comunidade, a exemplo de registros com os presidentes Fernando Henrique e Lula.
A indiferença do Brasil diante da CPLP foi tão ativa e parcial em benefício da Indonésia quando da luta em Timor pela independência, que essa ação chegou a ser criticada abertamente em alguns raros registros nos jornais. As tramas percebidas na visualidad também revelaram a mirada da diferença como uma constante em quase todas as notícias diretas sobre a CPLP.
Estamos diante de uma comunidade que é o Outro para o Brasil. Mesmo ao ser considerado “primo”, a qualificação econômica de rico, para Nós, e pobre, para Eles, marcava a diferença que se associa à relação de mando/obediência, diferença que os jornais mantiveram no Governo Lula como alerta ao perceber a aproximação identitária daquele presidente do Brasil com África. Será nesse ponto que a diferença ganha imediatos contornos de uma mirada de rejeição, que não implica apenas na ação do repelente para imunizar-se do contato com a diferença, mas no combate ao Outro, “o africano”, negro, pobre, criminoso, que ameaça cruzar a fronteira entre Nós.
Relembremos que as notícias acerca da mobilidade, da “cidadania lusófona” foram tratadas pelos dois jornais como casos de polícia. Nessas condições, podemos enxergar a dimensão da imagen construída no regime de visibilização em O Globo e na Folha de S.Paulo, um imaginário em torno da CPLP em que parece ser impossível reconhecê-la e experimentá-la como comunidade, uma comunidade de que somos parte e na qual estamos implicados pela história e pelas identidades.
O apagamento reiterado dessa possibilidade, de construir uma experiência communitas (Esposito, 2012), onde o sentido está na obrigação, no dever, no cuidado com os semelhantes, faz sugerir que esse regime de visibilização dos jornais baseia-se em uma ação política que cultiva o valor immunitas, que desenvolve, como se natural fosse, uma imagen de imunidade.
Os rastros que mobilizamos estão visíveis nos jornais Folha e em O Globo para que possamos experimentar as ausências, sentir uma não comunidade, um não reconhecimento e sequer que possamos produzir alguma sensação de pertencimento. Essa condição imunitária não é passiva. Sentir-se desobrigado, sem qualquer responsabilidade e/ou dívida histórica implica em agir contra o Outro porque Ele ameaça a nos lembrar de que somos dessa comunidade e, portanto, temos deveres para com todos. A imagen de imunidade não é, em hipótese alguma, neutra. O Outro é “africano”, negro e pobre, criminoso nato; a eterna ameaça ao Nós porque está próximo e nos convoca ao pertencimento. Por isso, a imunidade é um não reconhecimento ativo, uma repulsa que combate a ideia de comunidade.
Esse imaginário construído permanentemente é atravessado em nossas relações sociais pela imagen de colonialidade. Invisibilização, não reconhecimento, desobrigação, rejeição e combate à comunidade em razão da presença do “africano” estão fundamentados em um processo histórico que retoma a formação do Brasil Colônia. Os jornais de referência da Casa Grande propõem uma experiência jornalística baseada em um imaginário social em que as relações mando/obediência, superiores/inferiores, civilizados/primitivos, brancos/negros pareçam naturalizadas.
Nas notícias sobre essa comunidade no Brasil em que a presença majoritária dos povos da África é percebida, a imagen de colonialidade é convocada para marcar, em fronteiras quase intransponíveis, o Nós e o Outro, buscando-se reforçar as relações sociais de nossas heranças coloniais. O Outro é visto à distância para não contaminar, sendo objeto de permanente controle, subordinação e punição.
O que estou a dizer é que a invisibilização por presença é revelada como uma trama verbo-textual proposta na experiência jornalística nos jornais Folha de S.Paulo e em O Globo e isso resulta em construir uma comunidade invisível, ausente, mas combatida sem trégua. Em outras palavras, há alguma presença viva na experiência invisível, os rastros presentes e bem visíveis estão aí a formar uma coletânea que denunciam os parâmetros eurocêntricos a fixar muros entre Nós.
A invisibilização materializada nas poucas notícias visíveis configura um Brasil que tenta não enxergar os longos e profundos fios de pertencimento com os povos da África e da Ásia, dando forma a um regime de visibilização, porém, com ênfase no invisível. A experiência do invisível proposta pelos dois jornais é uma ação política que busca impedir que essa comunidade torne visível o Outro que nos constitui como somos e que está, de forma inexorável, entre Nós.
No próximo texto desse coluna, concluo essa longa sequência de artigos – iniciada em 4 de agosto de 2018 em A Pátria – sobre os 20 anos da CPLP no Brasil.
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