As duas frases acima são proferidas pelo cineasta francês Leos Carax — nome artístico de Alex Christophe Dupont, nascido em 22 de novembro de 1960 — no documentário ensaístico “Não Sou Eu” (2024), realizado como resposta a um questionamento biográfico. Tendo quarenta e um minutos de duração, este filme foi sagazmente associado a um curta-metragem [“Alegoria Urbana” (2024, de Alice Rohrwacher & JR), no qual o cineasta participa como ator] em seu lançamento nos cinemas brasileiros. Como os filmes de média-metragem — com duração entre trinta e um minutos e uma hora de duração — não encontram os mesmos espaços que outras obras nos festivais cinematográficos e exibições convencionais, a supracitada estratégia distributiva é deveras exitosa, tendo como precedentes recentes a conjunção entre “Estranha Forma de Vida” (2023, de Pedro Almodóvar) e uma entrevista com o seu diretor, ou a sessão dupla de “Fantasma Neon” (2021, de Leonardo Martinelli) e “Fogo Fátuo” (2022, de João Pedro Rodrigues). Pouco a pouco, filmes de todas as durações encontram o público disposto a aceitar o que é compartilhado por eles…
Em “Não Sou Eu”, Leos Carax compartilha bastante: a despeito de seu título negativo, trata-se de um filme positivamente confessional, em que ele ousa insinuar a possível colaboração nazista de seu pai, Georges Dupont, e se compara ao polonês Roman Polanski, já que ambos são “cineastas e baixinhos”, sem obliterar que este realizador é condenado pelo estupro de uma menor de idade, na década de 1970. Por mais que o diretor afirme a sua predileção pelos planos “já vistos”, esta autobiografia não convencional surpreende pela criatividade, ainda que não esconda o parentesco com a filmografia de Jean-Luc Godard [1930–2022], de quem Leos Carax é admirador confesso.
Logo na abertura, aparece um letreiro dizendo que este filme é um ‘work in progress’, traduzindo para o inglês algo que comumente aparecia nos trabalhos godardianos [“un film en train de se faire”]. Ao falar de sua vida, de seus parentes e de seus interesses mais íntimos, Leos Carax mistura lembranças, gravações pessoais e cenas de inúmeros filmes, sobretudo aqueles dirigidos por Fritz Lang e Alfred Hitchcock. Num estilo de narração ostensivamente assemelhado ao de “História(s) do Cinema” (1988, de Jean-Luc Godard), o diretor redige manifestos frasais repletos de poesia, declara as suas filiações políticas (contra o fascismo contemporâneo, perpetrado por Donald Trump, Vladimir Putin e afins) e reproduz cenas de suas elogiadas produções, enfatizando a longeva colaboração com o ator Denis Lavant, quase um alter-ego, com quem ele passeia, enquanto este último interpreta o infame Sr. Merda, personagem de seu episódio na produção trifásica “Tokyo!” (2008, co-dirigida por Michel Gondry e Bong Joon-Ho) e da sua obra-prima “Holy Motors” (2012).
Por vezes, Leos Carax lamenta a benção de ser capaz de enxergar, quando exibe filmagens de refugiados mortos por afogamento, mas ele também admite que “piscar é algo que nos é exigido pela beleza na vida”: numa sequência tão didática quanto reflexiva, ele faz com que a breve aparição de uma maçã, inicialmente visível por apenas um vinte e quatro avos de segundo, metonimize o quão eternizável é o cinema, ao fazer com que um segundo dure para sempre, em nossas memórias afetivas. Noutro instante inspiradíssimo, sua filha pequena o repreende por não tê-la salvo de ser mordida por um tubarão, num sonho. Enquanto artista que reflete sobre as modificações midiáticas do olhar (seguir um personagem utilizando uma câmera, num filme clássico, é algo completamente distinto de seguir uma namorada com o telefone celular), Leos Carax não disfarça a sua melancolia constitutiva, afinal transmutada em obras impressionantes como “Sangue Ruim” (1986), “Os Amantes de Pont Neuf” (1991) e o recente “Annette” (2021 — resenhado aqui), que lhe conferiu o prêmio de Melhor Direção no Festival Internacional de Cinema de Cannes.
Genial em mais de um sentido, “Não Sou Eu” pode não ser de todo original — nem era a sua intenção, visto que as referências são ostensivas —, mas possui um impacto avassalador, em meio à mesmice de produções hodiernas, no modo como retorna ao passado para comentar as debilidades do presente, os erros repetidos em âmbito político, a tendência progressiva ao esquecimento, por parte dos espectadores. Permitindo-nos, aqui, um juízo de valor, consideramos este filme obrigatório, sendo a sua audiência um bálsamo de inteligência, sensibilidade e autocrítica. Conhecer os filmes prévios de Leos Carax é outro exercício benfazejo de prazer cinematográfico. Que bom que ele está consciente de que já realizou o seu “canto do cisne”. Suas musas de celuloide agradecem por serem revividas de maneira tão passional, conforme ocorre na anedota sobre a imperfeição, a partir de um amante que desgostava da pinta facial de Marilyn Monroe. “Quantos não fariam de tudo para beijar esta pinta?”. Mais uma vez, viva o dissenso!
Wesley Pereira de Castro.
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