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“Não se deve combinar ‘crack’ com amor. O efeito bate ruim demais!”: acerca de um filmaço sobre “as idiossincrasias das ruas dominicanas”!

“Não se deve combinar ‘crack’ com amor. O efeito bate ruim demais!”: acerca de um filmaço sobre “as idiossincrasias das ruas dominicanas”!

Apresentado como se fosse um documentário, cuja disposição temática é refeita a cada nova decisão do protagonista, “A Bachata de Biônico” (2024, de Yoel Morales) é um filme que impressiona pela desenvoltura com que aborda questões que ainda são encaradas de maneira tabu pelo cinema: o vício dos personagens em substâncias alucinógenas e ilícitas é mostrado de maneira naturalizada, sem que isso implique a falta de exposição sobre os terríveis efeitos colaterais do abuso destas substâncias, tanto em âmbito individual quanto em impacto comunitário.

Vivendo num bairro periférico de Santo Domingo, capital da República Dominicana, Biônico (Manuel Raposo) é uma personalidade local que vive comumente chapado, mas que não incomoda os seus vizinhos, pois é simpático e prefere realizar serviços provisórios, a fim de conseguir as substâncias de que necessita para se evadir do problemas da vida real. Ele vive com o seu cachorrinho Necio e está freqüentamente acompanhado por Calvita (interpretado pelo ‘rapper’ El Napo), que, ao contrário dele, não tem o menor pudor em roubar e instaura algumas situações constrangedoras, exibindo o seu pênis para a câmera ou transando enquanto Biônico concede entrevistas. O seu ímpeto invasivo é tanto que, em determinado momento, surge um subcapítulo intitulado “A Bachata de Calvina”, demonstrando que este personagem tem uma relação sobremaneira possessiva quanto ao amigo…

A “bachata” do título refere-se a um estilo musical específico daquele país, que combina influências do boleto, do tango e do cha-cha-cha, e que tem a ver com a cadência afetiva do roteiro, co-escrito pelo diretor e Cristian Mojica, visto que Biônico demonstra-se progressivamente apaixonado pela personagem Magrela (Ana Minier), que está voluntariamente internada num centro de reabilitação, para tratar o seu vício em drogas injetáveis. À medida que a trama avança, notamos que Calvita sente ciúmes dela, pois isso faz com que Biônico, em mais de uma oportunidade, ameace deixar de usar as substâncias ilícita que ambos consomem e que os aproximam…

É bastante pitoresco que, no filme, nas diversas vezes em que Biônico decide largar o ‘crack’, ele fique preocupado que, com isso, a documentação cinematográfica de sua vida deixe de ser interessante, o que nos leva a pensar no quão ético é o relacionamento entre a equipe técnica — no filme dentro do filme — e os personagens reais, antes que descubramos que não se trata de um documentário efetivo — cujas maiores suspeitas para tal têm a ver justamente com a presença hiperativa e indumentariamente refinada de Calvita. Mas, ainda assim, mesmo em seu auge artificioso, o enredo nos obriga a refletir acerca dos sentimentos de interdependência existentes entre aquelas pessoas…

Num capítulo inusual, batizado como “um parêntese emocional”, um dos convivas de Biônico, um homem mais velho conhecido por todos como O Engenheiro (Donis Taveras), tem uma crise fatal, depois que ingere muitas substâncias alucinógenas sem ter se alimentado antes. Com isso, em sua aparente celebração do estado ébrio — visto que montagem e trilha musical reproduzem a “lombra” dos personagens —, o filme também denuncia alguns problemas irreversíveis associados àquele hedonismo compensatório, o que ocorre de maneira dramática e intensificada no trecho final do filme, envolvendo o reencontro, fora da clínica, entre Biônico e Magrela.

Dirigido, musicado e editado do maneira extremamente dinâmica, “A Bachata de Biônico” avança numa perspectiva ostensivamente ficcional, quando um ex-namorado de Magrela, Andrés (Yasser Michelén), após inúmeras tentativas de espancamento, oferece ao seu rival uma possibilidade comercial, envolvendo o tráfico de cocaína, o que desemboca numa comédia de erros alucinada, em que as diferenças de classe relacionadas ao consumo de drogas são escancaradas. É um filme que, em suas múltiplas nuanças, é assaz político!

Para quem ainda não viu este filmaço — por enquanto, relegado ao circuito dos festivais alternativos de cinema — fica aqui a nossa recomendação, no sentido de que a cinematografia dominicana não é muito conhecida, mas permitiu que este realizador, graças à Mentes Fritas, empresa produtora que compartilha entre amigos, mostrasse o quanto quaisquer cidades, sob o jugo do neoliberalismo e da globalização, têm em comum, em termos de seqüelas do desenvolvimentismo urbano irregular. “A Bachata de Biônico” é, acima de tudo, uma bela e dolorosa história de amor. Grande descoberta contemporânea!

Wesley Pereira de Castro.

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Fonte da imagem disponível em: https://www.papodecinema.com.br/wp-content/uploads/2024/11/20241106-a-bachata-do-bionico-papo-de-cinema-banner.webp

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