No dia 11 de agosto de 2025, os telejornais brasileiros trouxeram mais uma notícia chocante, que demonstra a banalização do racismo e do classismo no cotidiano institucional: um empresário de 47 anos, branco, incomodado porque o seu automóvel ficou provisoriamente obstruído numa rodovia, em Belo Horizonte, por causa da passagem de um caminhão de lixo, discutiu com a motorista do veículo. No afã por tentar acalmar esta discussão, um dos garis aproximou-se do carro do empresário, que lhe dispara um tiro e, como se nada tivesse acontecido, vai para uma academia de ginástica. Ele foi preso algumas horas depois e, durante a leitura das acusações, na delegacia, sorria, ciente de que ficará impune. Alguém adivinha em quem ele votou nas últimas eleições para presidente da República? Em seus perfis nas redes sociais, descrevia a si mesmo como cristão e patriota, mas possui uma lista considerável de crimes pregressos, sobretudo relacionados a agressões contra mulheres. Infelizmente, o seu caso não é uma exceção…
Este relato tão indignante quanto corriqueiro evidencia uma realidade revoltante, a de que o Direito serve aos endinheirados, muito mais que aos cidadãos comuns. Ainda assim, é importante que não paremos de acreditar na aplicação paritária da legislação ou numa Constituição Federal que atenda aos interesses de todas as pessoas. Redirecionando esta crença para o tema recorrente de nossa coluna, que são as análises cinematográficas, podemos refletir acerca dos ensinamentos de dois gêneros clássicos, consolidados por Hollywood, que abordam questões referentes à imputação (ou à impunidade) criminal: o faroeste e o terror. No primeiro deles, lidamos geralmente com situações em que uma formação citadina está a se organizar e, como tal, precisa de leis; no outro, a conjuntura frequente é a de um ambiente opressor em que as leis não dão conta da necessidade de sobreviver. E quando as convenções narrativas de ambos os gêneros são conjugadas?
Dirigido por um cineasta acerca do qual não se sabe quase nada, o longa-metragem “Sanha Diabólica” (1959, de Edward Dein) surpreende pelo modo como amalgama elementos do faroeste e do terror — de forma brilhante, aliás. Na primeira seqüência, um médico e um pastor comentam as suas respectivas filiações à ciência e à religião, enquanto tratam de uma estranha moléstia, que, de repente, acomete as jovenzinhas da cidade em que eles vivem. O médico, Dr. Carter (John Hoyt), afirma que, “se fosse supersticioso, diria estar sob o jugo de uma maldição”. Fica desolado quando a garota morre, ao proferir um grito de horror. O pastor Dan (Eric Fleming), entretanto, nota duas feridas ensangüentadas no pescoço da moça. Quando o Dr. Carter volta para casa, descobre que seu filho mais novo, Tim (Jimmy Murphy), brigara com um latifundiário recém-instalado na vizinhança, que tenta represar as águas do lago que fica em sua propriedade. É o começo de outro embate letal!
Ao exigir que seu vizinho poderoso e vilanaz Buffer (Bruce Gordon) se responsabilize pela fuga de algumas dezenas de bois, depois que uma cerca foi destruída, Tim é assassinado por ele. O xerife da cidade (Edward Binns) testemunha este assassinato, mas, como sói acontecer no Velho Oeste, atribui ao vilão a concessão da legítima defesa, visto que Tim sacou o seu revólver primeiro. Logo em seguida, o médico, pai de Tim, aparece morto, no retorno para casa, e Dan nota feridas em seu pescoço, deveras similares às que ele percebera na garota falecida. O que estaria causando estas mortes, aparentemente desvinculadas da briga por terras? Dolores (Kathleen Crowley), a filha aguerrida do Dr. Carter obstina-se em contratar um pistoleiro para assassinar Buffer, a despeito da oposição do xerife. O sombrio Drake Robey (Michael Pate) oferece os seus serviços mercenários, alegando que, se ele estivesse numa guerra política, a sua disposição em eliminar os opositores de seu contratante seria considerado um ao de heroísmo. Fiel aos seus valores bíblicos, Dan não aceita esta justificativa. É quando, numa investigação particular, ele deduz que Drake é um vampiro…
O resumo de eventos supracitado ocorre na primeira metade deste filme — que é curto, durando apenas setenta e nove minutos —, mas rende interessantes reviravoltas e uma impressionante sucessão de diálogos, em que os personagens, principalmente Drake, questionam a infalibilidade tanto dos determinismos religiosos quanto dos julgamentos advocatícios. As altercações entre Dan e sua pretendente amorosa Dolores destacam-se pela rudeza das assertivas, como no instante em que ele determina que algumas das atitudes dela, no que tange à reiteração da vingança, soam demoníacas, e ela retruca: “se o Diabo puder me trazer algum alívio, eu rezarei para ele”. Por que este filme não é devidamente divulgado? Por que não conhecemos a filmografia de Edward Dein [1907–1984], que escreveu o roteiro deste filme junto à sua esposa Mildred, demonstrando-se duplamente autoral? Por que empresários ricos (ideologicamente associados ao bolsonarismo) permanecem impunes, quando põem em prática ações radicalmente contrárias à ilibação religiosa que apregoam? Assistir a um filme tão inusitado quando este permite que, em nosso espanto espectatorial, possamos reagir ativamente às injustiças verificadas em nosso dia a dia. Afinal de contas, a cinefilia é algo eticamente profilático!
Wesley Pereira de Castro.
______________________________________________________________________________________________________
Fonte da imagem disponível em: https://m.media-amazon.com/images/M/MV5BM2M3MzJkNTYtZmI4NC00MjA4LWE0NzItMzkzNGFiZjVlYWQ5XkEyXkFqcGc@.V1.jpg