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Julgamentos oculares – ou de quando não há justiça na pretensão de sobrevivência…

Julgamentos oculares – ou de quando não há justiça na pretensão de sobrevivência…

Quem aprecia o universo audiovisual, obrigatoriamente lidará com as ameaças obliquamente cartelizantes da Netflix: deveras hábil na instauração massiva de interesse quanto ao lançamento de seus próprios produtos, esta plataforma de ‘streaming’ [audiência direta, como se fosse uma locação de conteúdos] é assunto onipresente nas discussões midiáticas atuais. Infelizmente, a maior parte de suas produções específicas caracteriza-se por uma mediania estrutural que anula as referências tramáticas deglutidas a partir da quota de anistoricidade oportunamente destilada sobre espectadores influenciáveis. Mas há exceções – e estas tornam este pré-conceito justificado tendente à emergente ressignificação…

Em 31 de maio de 2019, foi lançada, com certo alvoroço crítico, a minissérie “When They See Us” – no Brasil, rebatizada como “Olhos que Condenam” – dirigida pela conceituada cineasta negra Ava DuVernay. Baseada num atordoante caso jurídico real – sobre cinco adolescentes condenados à prisão por conta de um brutal estupro que não cometeram – esta minissérie voltou a ser noticiada mui recentemente, quando, em 14 de outubro de 2019, foi alvo de um processo alegando difamação contra um método de interrogatório policial demonstrado largamente ineficaz pelo roteiro da mesma. A audiência reativa a “Olhos que Condenam” é imperativa, portanto!

Dividida em quatro partes com pouco mais de uma hora cada, “Olhos que Condenam” apresenta uma cadência directiva distinta a cada episódio: no primeiro deles, conhecemos os cinco protagonistas adolescentes e testemunhamos o modo absurdo com que eles são acusados de um crime que obviamente não cometeram; no segundo, acompanhamos os meandros do julgamento em pauta, reproduzindo em detalhes as situações do inquérito real; e, no terceiro e quarto, verificamos o que ocorreu com os garotos em seus respectivos confinamentos prisionais. E é árduo porém necessário tomar conhecimento deste absurdo – porém recorrente – caso de injustiça advindo das motivações generalizantes do racismo.

Obcecada pela denúncia desta terrível mazela social, a diretora Ava DuVernay atinge aqui o melhor momento de sua carreira, visto que a sua penetratividade em Hollywood – com vistas à maior comunicação com o público – implica em submissão a convenções narrativas xaroposas, que instalam-se na minissérie principalmente em seu segundo episódio. Entretanto, o que a diretora traz à tona ultrapassa as limitações eventualmente impositivas dos clichês narrativos a que teve que se submeter: afinal, se alguns clichês são tão renitentemente utilizados, é porque eles contêm algo de verdadeiro em sua gênese. A inquirição sobre o pendor racista em discursos institucionais é um deles, infelizmente.

Neste sentido, um dos maiores méritos da diretora – que também é co-roteirista dos episódios – é mesclar a condução necessariamente melodramática dos destinos dos rapazes com uma apresentação onisciente das reuniões deliberativas de seus advogados de acusação e defesa, evidenciando que o julgamento de que todos participam é de caráter eminentemente político. E, como diz um dos bacharéis, “política tem a ver com sobrevivência – e não há nada de justo na sobrevivência”!

Por mais que não seja um caso inédito, é doloroso acompanhar a saga de infortúnios enfrentada pelos cinco garotos: a diretora foi extremamente safa e intencionada em sua exposição de fatos e situações, sendo angustiante o deslindamento das trajetórias sofridas dos personagens reais, ao desfecho. Nenhuma absolvição póstuma devolve a quem foi espancado, estuprado, vilipendiado, rejeitado e ferido física e psicologicamente aquilo que foi perpetrado ao longo de anos e anos de encarceramento atroz.

Em meio a um elenco mui talentoso e eloqüentemente homogêneo, sobressai-se Jharrel Jerome – premiado como Melhor Ator em Minissérie ou Telefilme na cerimônia do Emmy deste ano – na pele do sofrido Korey Wise, estigmatizado por ser mau anulo (quiçá disléxico), a despeito do cabedal de problemas familiares que enfrenta. As agruras por ele enfrentadas são dramaturgicamente potentes, a ponto de o confinamento em celas solitárias ser desejado enquanto atenuante de seus sofrimentos carcerários. Imagine-se por aí a dimensão dos tormentos enfrentados por ele. Triste demais saber que aquilo aconteceu realmente – e que, pior: continua a acontecer diuturnamente!

Outro mérito elogiável da diretora e roteirista Ava DuVernay está em evitar a unidimensionalidade na composição dos personagens: efetivamente inocentes em suas adolescências, eles são obrigados a lidar com a malevolência induzida do acúmulo de preconceitos sociais em suas vidas adultas. Além das chagas lamentavelmente persistentes do racismo estrutural estadunidense, eles são sub-repticiamente proibidos de readequarem-se à sociedade ao serem tachados de estupradores e, portanto, vêem-se diante da falsa escolha entre criminalidade ou compensações subempregtícias, tanto quanto vários outros não-brancos em todo o mundo. E admitamos: foi válido que esta proposição questionadora tenha provindo da Neflix. Voltaremos a estes assuntos, a posteriori, em bons e maus exemplos. “Olhos que Condenam” é um dos ótimos – e não surpreenderá se aparecer nas listas de melhores filmes do ano de alguns cinéfilos, mesmo sendo uma minissérie!

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