Em razão de os cinemas estarem fechados há alguns meses, por causa do avanço do CoronaVírus no mundo, os festivais cinematográficos também foram suspensos. Por enquanto, as datas de realização dos tradicionais festivais de Cannes e Veneza estão indefinidas. A fim de não acentuar a exigüidade de filmes concorrentes, as regras de aceitabilidade do Oscar 2021 serão mais permissivas em relação a produções advindas dos serviços de ‘streaming’. Por motivos óbvios, as precauções obrigatórias num ambiente pandêmico engendram alterações fundamentais na mercantilização midiática das obras de arte…
Visto que as equipes das telenovelas, muito populares no Brasil, tiveram as suas atividades provisoriamente paralisadas em decorrência das recomendações de isolamento social, os telespectadores estão contornando o sobejo de reprises na TV aberta com a pretensa variedade de plataformas como a Netlix, cada vez mais popular na distribuição de conteúdos próprios. As séries e longas-metragens financiadas por este serviço de ‘streaming’ esforçam-se para dirimir o moralismo inicial, investem cada vez mais em conteúdos e situações eróticas ou criminais, a fim de assegurar audiência através de polemismos epidérmicos que disseminam-se mui velozmente nas publicações cibernéticas. A nova esfera pública é digital e lamentavelmente anistoricizada!
Após uma negociação bastante tumultuosa, visto que a sua estréia nos cinemas não pôde ocorrer nas condições supracitadas, a Netflix adquiriu os direitos de distribuição do filme sul-coreano “Tempo de Caça” (2020, de Yoon Sung-Hyun), bastante elogiado no Festival Internacional de Cinema de Berlim, ocorrido no final do mês de fevereiro, e lançado mundialmente em 23 de abril de 2020. Por mais de um motivo, é uma recomendação valiosa nesta época de quarentena.
Em termo gerais, “Tempo de Caça” é um típico filme policial sobre assaltos: dois rapazes aguardam a saída da prisão de um amigo em comum e, após algumas elucubrações feriais, resolvem usurpar o dinheiro de uma casa de apostas comandada por mafiosos locais. Por motivos esperados, eles são arduamente perseguidos até o último instante de projeção. Entretanto, apesar da fórmula sinóptica bastante genérica, o que surpreende nesta produção é a direção de arte levemente futurista que traz a luz sobre desavenças societais que enfrentamos no presente. Prossigamos…
O rapaz que sai da cadeia após três anos chama-se Jun-Seok (Lee Je-Hoon), e fôra preso por conta de um golpe mal-sucedido. Na prisão, ele conhece um traficante de armas que faz com que ele vislumbre uma viagem até uma ilha de Taiwan, onde poderá estabelecer-se como lojista e gozar de lucros privilegiados. Ele facilmente consegue convencer seus amigos a participar desta arriscada empreitada: Jang-Ho (Ahn Jae-Hong) aceita a proposta de imediato, pois é órfão e bastante apegado aos companheiros, mas Ki-Hoon (Choi Woo-Shik) reluta um pouco. Sua mãe está doente e seu pai está desempregado, participando com freqüência de protestos inflamados contra a decadente situação econômica local. A eles junta-se Sang-Soo (Park Jung-Min), que traíra os amigos no passado mas agora trabalha na casa de apostas visada e colabora com informações elementares. Não é difícil imaginar o que vem em seguida…
O grande mérito de “Tempo de Caça” está justamente naquilo que desenha a partir desta trama básica: em mais de um momento, os amigos tentam explicar a Jun-Seok a extrema desvalorização da moeda sul-coreana. Até mesmo pagamentos corriqueiros são realizados em dólares e muitas lojas decretaram falência extremada. A família de Jun-Seok, inclusive, possuía uma loja de bicicletas, que está abandonada numa região inabitada. Apesar de suas fachadas estarem completamente pichadas, o interior da loja permanece intocado. Os mendigos são abundantes nas ruas, mas as invasões aos grandes prédios não ocorrem. Algo estranho aconteceu naquele cenário, e o enredo não cede à tentação de explicá-lo: transfere ao espectador esta necessidade, que projeta seu próprio arcabouço de experiências à delicada relação de amizade apresentada. As convenções persecutórias são pretextos para que reflitamos sobre as conseqüências do abandono social. É um filme que diz muito nas entrelinhas, portanto!
Mesmo que não se queira interpretar as inauditas pistas conjunturais de enredo e direção de arte – que dizem muito sobre a nossa situação atual – “Tempo de Caça” funciona muito bem enquanto filme de ação incessante e demonstração do vigor qualitativo do atual cinema sul-coreano. A direção de fotografia do estreante Won Geun Lim impressiona pelo uso dos tons rubros, que deixa evidente a atmosfera concomitantemente onírica e ígnea, de modo que, não por acaso, algumas situações revelam-se como contundentes pesadelos de Jun-Seok. Para quem sente-se negativamente confinado nesta fase asfixiante da História hodierna – um dos personagens é asmático, acrescentemos –, este filme oferece um alento providencial (e até profético) no que tange à importância das conexões afetivas. Defecar de porta aberta e fingir estar adormecido para flagrar companheiros de quarto masturbando-se são ações mencionadas dialogisticamente como indicativos da carência emocional de Jang-Ho, em determinados momentos. Mais uma vez, insiste-se: não é por acaso. Na narrativa sobrevivencial de nosso cotidiano, nada é!



