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Final de ano cinéfilo (ou de quando as nossas lembranças e sonhos confundem-se com os filmes que vemos)…

Final de ano cinéfilo (ou de quando as nossas lembranças e sonhos confundem-se com os filmes que vemos)…

Conforme sói acontecer, o mês de dezembro é marcado pela publicação das listas de melhores filmes do ano, que fazem com que os cinéfilos mergulhem em verdadeiras maratonas de audiência, a fim de conferirem os títulos preferidos por outrem. Dentre as principais listas, mencionamos aquela divulgada pelo diretor John Waters – que geralmente enfatiza as temáticas sexuais e, neste ano, elogiou enfaticamente dois filmes recentes de François Ozon – e o compartilhamento da relação de “melhores filmes de todos os tempos”, levada a cabo pela publicação britânica Sight and Sound, que, pela primeira vez em sua história, elegeu uma produção dirigida por uma mulher na colocação mais importante. Neste caso, uma obra-prima, “Jeanne Dielman” (1975), dirigido pela cineasta belga Chantal Akerman [1950-2015].

Para boa parte dos espectadores, a lista mais relevante é aquela divulgada pela tradicional revista Cahiers du Cinéma, que comumente inclui cineastas de seu panteão entre os escolhidos. No caso, Jordan Peele, Hong Sang-Soo, Alain Guiraudie e Richard Linklater. No primeiro lugar deste ano, “Pacifiction” (2022, de Albert Serra). Trata-se de um compêndio cinematográfico bastante coerente, isso ninguém pode negar!

No que diz respeito às preferências do público de festivais, “Aftersun” (2022), longa-metragem de estréia da escocesa Charlotte Wells, foi um dos mais incensados, tendo recebido algumas láureas no Festival de Cannes e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, entre outros prêmios. Além de ter seus direitos de exibição adquiridos pelo serviço de ‘streaming’ Mubi, este filme estreou em salas de cinema no derradeiro mês do ano, de modo que será lembrado nas listas individuais de muitos cinéfilos.

A trama é bastante simples: uma garota de onze anos, Sophie (Frankie Corio), e seu jovem pai Calum (Paul Mescal) passam um final de semana num hotel modesto na Turquia. Mergulham e almoçam juntos, diariamente, e conhecem-se melhor, visto que eles não moram juntos. Calum não é casado com a mãe de Sophie, mas despede-se dela dizendo “eu te amo”, ao telefone, o que deixa a garota intrigada: “por que tu dizes isso para ela?”, pergunta. A resposta de Calum é imediata: “porque ela é da família”. Mas sabemos pouco sobre as condições do relacionamento deles, tanto que alguns hóspedes pensam que Sophie é a irmã mais nova de Calum, em vez de sua filha, de tão exígua que é a diferença de idade entre eles.

Os acontecimentos deste final de semana ferial aparecem como ‘flahsbacks’ para a adulta Sophie (Celia Rowlson-Hall), que vive com outra mulher. E, de maneira muito curiosa, suas lembranças são associadas a gravações em VHS, realizadas numa câmera digital comprada por Calum. Aliás, são diversos os instantes em que situações entretenedoras são convertidas em imagens, como quando Sophie disputa um jogo eletrônico com o adolescente Michael (Brooklyn Toulson), que simula uma corrida de motocicletas. Este garoto proverá a Sophie o seu primeiro beijo, sobre o qual seu pai deseja saber mais, de maneira respeitosa. “Tudo o que acontecer em sua vida, pode contar para mim . Eu já fiz de tudo!”, diz Calum, à guisa de consolo. Entretanto, algo o aflige de maneira recorrente…

Numa gravação que é reproduzida mais de uma vez, ao longo de filme, Sophie brinca que seu pai completará cento e trinta e um anos de idade em breve. Num momento bastante dramático, ele é flagrado sozinho, nu em seu quarto, chorando copiosamente. O que será que tanto atormenta Calum? Um dos aspectos mais fascinantes deste roteiro, escrito pela própria diretora, é não explicar demasiado o que acontece. É um filme para ser sentido, portanto, tanto quanto a pixelização que invade eventualmente a tela. Como se aquelas memórias de pré-adolescência fossem uma fita desgastada, que está se apagando com o tempo…

Não obstante, numa análise imediatista, este filme ser assaz assemelhado a tantos outros, sobre pais divorciados que se divertem com filhos que quase não conhecem, “Aftersun” beneficia-se da lógica aberta, anteriormente mencionada: ao término da sessão, precisamos cotejar o que acontece com as nossas próprias lembranças de juventude, a fim de complementar aquilo que Sophie ainda não entendia, quando observou pela primeira vez. Vide a seqüência em que, ao perguntar o que ela está achando de um livro que alega não compreender direito, Sophie pergunta: “pai, o que quer dizer ‘municipal’?”. Ah, se ele pudesse responder a todas as perguntas que ela faz…

No papel de Calum, Paul Mescal entrega uma interpretação contida, um tanto desconfiada, como se estivesse escondendo algo, a fim de preservar a sua filha – e, por extensão, o espectador; Frankie Corio, por sua vez, é expansiva, sorridente, prenhe de simpatia e carisma, a ponto de interagir naturalmente com alguns hóspedes mais velhos, com quem joga sinuca e testemunha algumas carícias ousadas, à beira da piscina. Há algo de classista no desenvolvimento da narrativa, o que talvez afaste algumas pessoas, mas é fácil entender o porquê de esse filme ser tão bem-quisto pelo público: afinal, ele lida com anseios elementares, tanto em âmbito familiar quanto relacional. Sem contar que as canções “Losing my Religion”, da banda R.E.M., e “Under Pressure”, interpretada por Queen & David Bowie, são emocionalmente aproveitadas, respectivamente, numa cena de karaokê e noutra de dança desengonçada. Que venha(m) o(s) próximo(s) ano(s) cinéfilo(s)!

Wesley Pereira de Castro.

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