Como acontece periodicamente, os anos são difamados pela significância das perdas nele ocorridas. Nem bem findaram as duas primeiras semanas de 2022 e personalidades muito importantes faleceram – algumas, por estarem idosas, conforme ocorreu com o poeta brasileiro Thiago de Mello [1926-2022], ao noventa e cinco anos de idade. Mas também morreram os cineastas Peter Bodganovich (aos 82 anos) e Jean-Jacques Beineix (75), a cantora Ronnie Spector (78) e o ator Sidney Poitier (94), apenas para ficar em alguns famosos. E a lista só cresce a cada dia…
Por mais que compreendamos a morte como parte inelutável (e necessária) do ciclo da vida, é muito doloroso depararmo-nos com o obituário de entes e/ou personalidades queridas. Os nomes supracitados conseguiram imortalizar-se artisticamente, através de obras indispensáveis, sejam livros, filmes ou canções. Não foram existências vãs, portanto: cada qual a seu modo, eles incentivaram transformações na sociedade, amaram e foram amados.
Quando o falecimento ocorre por vias trágicas – e no fulgor da idade – a comoção é ainda maior. E, neste sentido, convém aproveitarmos esta oportunidade para comentar o lançamento do documentário “Já que Ninguém me Tira Para Dançar” (2021, de Ana Maria Magalhães), sobre a trajetória da icônica atriz fluminense Leila Diniz [1945-1972], que morreu num acidente aéreo, numa viagem através da Índia, aos vinte e sete anos de idade, quando voltava de um festival de cinema na Austrália.
Revelada na obra-prima “Todas as Mulheres do Mundo”(1966), dirigida por seu ex-marido Domingos de Oliveira [1936-2019], Leila Diniz converteu-se rapidamente numa das personalidades mais importantes e carismáticas do Brasil. Além de sua extrema beleza, ficou conhecida pelo modo audacioso como enfrentava a censura do período ditatorial no País, sendo célebre a entrevista publicada para o jornal O Pasquim, em 1969, na qual proferiu vários palavrões e, por causa disso, passou a ser perseguida pelas autoridades. Ao posar grávida usando biquíni, mais uma polêmica eclodiu: em seu pouco tempo de vida, pautou importantes questões feministas, na práxis do dia a dia. Cinqüenta anos após a sua morte, ela continua sendo reverenciada. Reiteramos: é uma personalidade imortal!
No filme, ouvimos os depoimentos de vários colegas, amigos e namorados, incluindo o psicanalista Luiz Eduardo Prado de Oliveira, com quem a estrela teve o seu primeiro romance. Sabemos de suas inclinações à poesia e de sua generosidade abundante. Trechos das atuações cinematográficas e televisivas de Leila Diniz são apresentados. A atriz Maria Gladys comenta até mesmo as brigas que eventualmente tiveram. É uma homenagem audiovisual sobremaneira emocionante!
As filmagens deste documentário foram iniciadas em 1982, mas interrompidas por questões orçamentárias. A diretora – que também é uma excelente atriz – restaurou o material original e acrescentou alguns elementos, incluindo uma narração que compara o tempo em que a biografada viveu com os apanágios da atualidade: “hoje temos TV a cabo, ‘streaming’, redes sociais. Se tu estivesses viva, terias milhares de seguidores”. A leitura de uma reportagem publicada numa revista francesa confirma a sua influência reivindicativa, deveras importante num contexto político em que muitos direitos elementares dos cidadãos (e, principalmente, das cidadãs) são obliterados pelo bolsonarismo. Ao ter a sua importância celebrada, é como se Leila Diniz revivesse!
O material de arquivo apresentado é valioso: desde as falas de Marieta Severo elogiando a intensidade actancial da artista até o reconhecimento de Betty Faria de que ela contribuiu bastante para a união entre mulheres, a despeito do ciúme existente no relacionamento desta última com o ex-marido Cláudio Marzo [1940-2015], ostensivamente fascinado por Leila Diniz. Como ficar incólume diante de seu charme? Curiosamente, o parceiro mais recorrente da atriz nas telas, Paulo José [1937-2021], comenta que nunca foram namorados, apesar de atuarem dessa forma em mais de um trabalho. Assistir ao filme é celebrar a humanidade.
Não obstante o documentário ser um tanto irregular em seus resultados (exemplo: um trio de atrizes – Lídia Brondi, Louise Cardoso e Lígia Diniz – representa Leila Diniz em fases diferentes de sua vida), as fotografias e gravações apresentadas são mui relevantes, incluindo-se as aparições memoráveis do compositor Nelson Sargento [1924-2021], as inserções rememorativas do cineasta Nelson Pereira dos Santos [1928-2018], que a dirigiu em duas oportunidades e considera a sua morte “uma perda irreparável para o cinema brasileiro”, e os testemunhos do grande amigo da atriz, Luiz Carlos Lacerda, que dirigiu uma cinebiografia homônima sobre ela, em 1987, além de escrever vários livros em sua memória, definindo-a como uma mistura de Marilyn Monroe [1926-1962] e Dercy Gonçalves [1907-2008]. Nos créditos finais, Martinho da Vila canta uma música que compôs sobre ela: “ai, que saudade da beleza democrática/ Ai, que saudade do sorriso progressista/ Ai, que saudade de ouvir certas verdades/ […]/ Esta saudade tem um nome e um sobrenome/ Esta saudade é uma mulher, Leila Diniz”…
Nas imagens de um projeto cinematográfico iniciado Por Gustavo Dahl [1938-2011] – infelizmente, não concluído – a homenageada e a diretora, ambas muito jovens, dançam juntas. A missão constante no título do filme é levada a cabo: Leila Diniz segue dançando e encantando-nos ainda hoje, como continua a ocorrer com as pessoas falecidas que amamos. E convém dizer isso em vida, como fizeram os múltiplos depoentes deste documentário – entre eles, seu derradeiro esposo, Ruy Guerra. A propósito: te amo, já disse hoje?
Wesley Pereira de Castro.



