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“Está todo mundo passando fome e tu tens coragem de falar em ordem?!” [o Brasil antes, o Brasil hoje]

“Está todo mundo passando fome e tu tens coragem de falar em ordem?!” [o Brasil antes, o Brasil hoje]

Enumerar as atrocidades cometidas pelo (des)governo atual brasileiro seria um trabalho redundante: o presidente Jair Bolsonaro, além de demonstrar ser moralmente ignóbil em suas declarações preconceituosas e chulas, comete vilanias em todas as subdivisões ministeriais. Nos primeiros três anos de seu mandato, ele perseguiu os trabalhadores da Cultura, mentiu descaradamente acerca das providências dos profissionais da Saúde no enfrentamento da pandemia pelo CoronaVírus e contribuiu para o incremento preocupante da inflação e da fome no Brasil. O país voltou a ser noticiado em decorrência de seus maus índices de desenvolvimento social – e, surpreendentemente, ainda há quem apóie este representante hediondo do Poder Executivo!

Diante dos fatos mencionados e no afã por manter evidentes os apanágios nacionais de resistência através da Arte, convém prestarmos contínua atenção aos filmes produzidos sob a égide do que foi definido como Cinema Novo, na década de 1960. Este movimento produziu alguns dos mais importantes filmes brasileiros – nem sempre reconhecidos pelo público – e foi bastante exortado através do jargão “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”. Trata-se de uma generalização, mas é procedente!

Em verdade, o movimento cinema-novista é muito mais complexo que isso, sendo alvo de muitas críticas (internas, inclusive) por causa da elitização de alguns de seus realizadores, no que tange à abordagem das questões políticas e sociais apresentadas. Concentrando elementos que desembocariam na publicação do célebre manifesto “Eztetyka da Fome”, pelo cineasta Glauber Rocha [1939-1981], os filmes do Cinema Novo postulam o “questionamento radical das expectativas de fruição do espectador, educadas socialmente em função da narrativa clássica”, como sintetiza o pesquisador e historiador do cinema Fernão Ramos.

Novamente citando este autor – no clássico artigo “Os Novos Rumos do Cinema Brasileiro (1955-1970)” –, o Cinema Novo pode ser dividido em três diferentes trindades, cada uma delas com características bastante específicas: no primeiro caso, o que unifica os filmes é “a representação de um Brasil remoto e ensolarado, onde se vislumbram conflitos de cunho político”; no segundo, “um momento de forte autocrítica”, em fase posterior ao golpe militar de 1964; e, no terceiro, a manifestação de “fortes tons alegóricos com a preocupação de retratar o Brasil e sua história”.

Teremos oportunidades vindouras de abordar cada um desses períodos, mas, pela similaridade lamentosa com a situação contemporânea do país, é oportuno debater a primeira dessas trindades, composta pelos filmes “Vidas Secas” (1963, de Nelson Pereira dos Santos), “Os Fuzis” (1963, de Ruy Guerra) e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1963, de Glauber Rocha), obras-primas inquestionáveis do cinema brasileiro. Deter-nos-emos em particular no segundo destes filmes, merecedor de inúmeros prêmios internacionais, entre eles o Urso de Prata no Festival de Berlim, em 1964.

Filmado e situado na cidade baiana de Milagres, o roteiro deste filme não possui uma narrativa linear, mas a progressão de focos concomitantes de tensão: a situação central é a necessidade de proteger as mercadorias que serão removidas de um armazém cercado por dezenas de romeiros, que podem saquear o local a qualquer momento. Para tanto, é convocado um regimento de soldados, enquanto um caminhoneiro cujo veículo quebra nas proximidades reencontra um colega da época em que ele próprio servira ao Exército. A qualquer momento, uma confusão periga acontecer, mediante a contestação que intitula esse texto, proferida pelo personagem Gaúcho (Átila Iório). Segundo ele, “a morte só é vã quando provocada da fome”, e ele se revolta quando um sertanejo pacato adentra um bar e pede um caixote para enterrar o cadáver do filho…

Em meio aos fatos descritos, uma peregrinação religiosa que “tem apenas a fome e fé, falta o milagre” cultua um boi santo, enquanto as pessoas desesperam-se por não ter o que comer. No limite de sua desesperança, o padroeiro desta seita – interpretado por Maurício Loyola, mas dublado pela voz tonitruante de Antônio Pitanga – ameaça o bovino venerado, prestes a ser desmembrado pela sanha de quem está à beira da morte por inanição. O desfecho do filme, infelizmente, tem muito a ver com manchetes jornalísticas hodiernas, como a aflição de pessoas que atiraram-se diante de caminhões de lixo ou que desenterraram víveres impróprios para o consumo, por estarem com a validade vencida. Há “ordem e progresso” num contexto em que “a fome é má conselheira”? Segundo a hipocrisia bolsonarista, sim, e a ideologia cristã é invertida cotidianamente nos pronunciamentos incitadores de ódio do supracitado presidente.

O título do filme não é “Os Fuzis” por acaso: são diversas as cenas em que as armas dos soldados são exibidas de maneira criticamente fetichizada, como quando um deles desmonta uma delas e oferece goles de cachaça aos moradores que adivinharem o nome das mesmas. Num instante de tédio, frente à passividade dos retirantes que amontoam-se diante do armazém, estes soldados resolvem apostar que conseguem atirar num cabrito à distância e terminam assassinando, por acidente, um homem, o que aumenta o sentimento de impotência dos esfomeados. O bem-intencionado Mário (Nelson Xavier) tenta desculpar-se com uma parenta do falecido, Luíza (Maria Gladys), por quem se apaixona, mas os clamores dos romeiros sobrepõem-se aos seus afoitos gestos amorosos. Como demonstrar afeto, quando, outra vez, a fome grita como inclemente motivadora?

A direção de Ruy Guerra, moçambicano radicado no Brasil, é primorosa e o elenco é magistral. Os atos de revolta mostrados no clímax, bem como os seus testemunhos famélicos, são freqüentes nos filmes desta primeira fase do Cinema Novo. Os figurantes locais relatam suas estórias de vida, como a mulher que fica cega ao tentar salvar os bisnetos de um incêndio ou o sertanejo que tenta vender a sua filha adolescente para o caminhoneiro Gaúcho. Em mais de uma seqüência, alguém pergunta se há algum trabalho disponível. A resposta: “o único serviço que existe por essas bandas é rezar, esperar pela misericórdia…”. Esta situação fôra atenuada no início do século XXI, mas o bolsonarismo trouxe consigo o pior dos retrocessos: até mesmo a religiosidade foi cooptada pelo armamentismo. Temer o próximo tornou-se mais urgente que amá-lo. O que podemos fazer diante disso?

[pergunta em aberto]

Wesley Pereira de Castro.

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3 respostas

  1. Através da lente da câmera o que se vê é sempre a realidade que se apresenta, evidentemente intencional quando segue um guião (script), crítico ou não, porém quando a realidade é adversa, as reações serão sempre de incômodo, e tendo em mente o magnífico conto machadiano “A Igreja do Diabo”, reconfortamo-nos por sabermos que toda penitência forma o espírito, enrijecendo-o. O magnífico texto do Dr. Wesley nos dá uma certeza, que o que podemos fazer diante dessa maldição, está sendo feito, “sem esperar pela misericórdia”, no azedume geral da insatisfação, que libertar-nos-á deste interlúdio de equívoco.

  2. Muitíssimo obrigado pelos comentários…

    E que o debate continue ativo: afinal, a História repete-se algumas vezes e, aqui no Brasil, escolheram os piores aspectos para trazerem de volta. Felizmente, não apenas a pessoa do Ruy Guerra continua vivo, como já soube imortalizar-se através de sua obra, tal qual bem o fez o egrégio Machado de Assis.

    E sigamos lidando com os equívocos diuturnos: eles vêm aos montes. Mas estamos conscientes. Que dure, que faça alguma diferença na práxis.

    Obrigado novamente: estamos do mesmo lado!

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