EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

Em reação a um disco: a arte redefine os nossos troféus diuturnos de autocomiseração!

Em reação a um disco: a arte redefine os nossos troféus diuturnos de autocomiseração!

Em 1953, no sofrido fulgor juvenil de seus 23 anos de idade, a carioca Elza Soares da Conceição subiu ao palco de um célebre programa radiofônico de auditório e foi inicialmente desdenhada pelo apresentador Ary Barroso (1903-1964), um dos mais insignes compositores brasileiros. Precisando trabalhar como faxineira para sustentar a sua família e cuidar dos filhos doentes, a então cantora amadora foi interrogada acerca de qual planeta teria vindo. A resposta surge como título de seu mair recente disco, o ótimo “Planeta Fome”, lançado em setembro de 2019.

Associado diretamente aos dois álbuns mais recentes da intérprete, “A Mulher do Fim do Mundo” (2015) e “Deus é Mulher” (2018), “Planeta Fome” (2019) impõe-se por sua coerência discursiva: é essencialmente brasileiro, deseja sê-lo cada vez mais e, como tal, propõe soluções de enfrentamento para a caótica situação nacional em face do pérfido [des]governo bolsonarista. E, para tal, mune-se tanto de composições inéditas quanto de um bem-vindo resgate autocrítico do cantor Gonzaguinha (1945-1991), regravado na faixa 05, “Comportamento Geral”, de uma maneira que questiona a efusão aparentemente deslumbrada das brasilidades anteriores: Você merece/ Tudo vai bem, tudo legal/ Cerveja, samba e amanhã, seu Zé/ Se acabarem teu carnaval”… Não por acaso, Gonzaguinha é novamente convocado na brilhante e estupefaciente “Pequena Memória para um Tempo sem Memória” [10], cuja letra já começa implacável: “memória de um tempo onde lutar por seu direito é um defeito que mata”. Glupt!

Ou seja: não obstante proclamar a malemolência tipicamente brasileira como enfrentamento possível à censura progressivamente instaurada e à legitimação contínua da violência legislativa contra os pobres (sobretudo, negros) do país, a cantora deixa claro que é mister refletir não apenas sobre o que se faz, mas também sobre o como se faz. Não basta resistir, tem-se que saber por que e contra o que se está resistindo… E, paradoxalmente, a faixa imediatamente anterior, “Blá Blá Blá” [04], instaura um efeito de estranheza ao servir-se de um conhecido refrão de Tim Maia (1942-1998) como ímpeto reclamante: “me dê motivos/ para ir embora…”. Porém, isso não anula o questionamento resgatado a partir das composições de Gonzaguinha: apesar de mui afirmativa, Elza Soares não impõe fórmulas, mas problematiza justamente a eficácia doutrinária das mesmas.

Em “Não Tá Mais de Graça” [08], ela interroga-se acerca das limitações militantes dos tempos hodiernos, criticando os “Che Guevaras de sofá”. Deixa evidente o recado, mas, junto à supracitada “Blá Blá Blá”, esta canção não é tão propositiva quanto “Brasis” [03] ou “País do Sonho” [09], muito assemelhadas em sua listagem de critérios mínimos de cidadania nacional. Na primeira das canções, ela canta: “o Brasil que dá é igualzinho ao que pede/ Pede paz e saúde, trabalho e dinheiro/ Pede pelas crianças do país inteiro”; na segunda, ela conclama: “eu preciso encontrar um país/ Onde ninguém enriqueça em nome da fé/ E o prazer verdadeiro do crack/ Seja fazer gols como Garrincha. Obrigada, Mané!”.

Após este agradecimento imperativo, cabe a abertura de um parêntese biográfico: a cantora foi casada com o futebolista mencionado, Mané Garrincha, alcunha pública para o fluminense Manoel Francisco dos Santos (1933-1983), cujas agressões deflagradas contra a cantora eram infelizmente recorrentes. Em verdade, violência conjugal foi algo que a cantora conheceu de perto em mais de um relacionamento, bem como as conseqüências nefastas da fome e da pobreza. Aos 89 anos de idade, enfrenta os traumas – individuais e coletivos – de cabeça erguida, conforme escancara em “Virei o Jogo” [11, penúltima faixa do álbum], composta por Pedro Luís: “Se vem de não, eu vou de sim/ Afirmação até o fim/ Não descarrega sua arma em mim/ A sua raiva não vai me abater/ Você é não sou um milhão de sins/ Tenho meu povo pra me proteger”. O alvo deste discurso de sobrevivência e resistência é facilmente detectável aqui!

Na derradeira faixa, “Não Recomendado” [12], composta por Caio Prado, a cantora apregoa um libelo em defesa dos homossexuais e contra a pérfida censura direcionada a formas de amor consideradas “pervertidas” ou “péssimas influências”, inserindo versos da canônica “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque, em meio ao refrão, e encerrando canção e disco com um questionamento já clássico da banda Titãs: “você tem fome do quê? Você tem sede de quê?”. Respondemos a isso diuturnamente, visto que até mesmo a mais automática de nossas (re)ações é um gesto político!

Em meio a tanto protesto necessário, há espaço também para uma legítima canção de amor, “Lírio Rosa” [07], composta por Luciano Mello e Pedro Loureiro, em que encontramos versos tão ternos quanto os que se seguem: “quando um lírio toca o meu olhar/ Vejo as horas pra viver/ Meu colírio é você/ Meu olhar brilha em você/ Minha vida em você/ Que fez de mim um sol/ Fez o que sou eu/ Quando a primavera nasceu”. Lindo poema!

Para o desenho da capa deste disco, foi convocado o talento genial e protestante de Laerte Coutinho, cartunista de consagração longeva que também se destaca por sua redefinição pessoal de gênero, assumindo posturas ostensivamente femininas há algumas décadas. Nota-se uma conflagração benfazeja de excelências artísticas, que lidam cotidianamente com as opressões advindas do poderio da extrema-direita e do conservadorismo atroz de perseguidores hipócritas abundantes no país. Por tudo isso, apesar de breves inconstâncias, este disco imiscui-se desde já entre os grandes lançamentos musicais do ano: “Planeta Fome” é exuberante e contundente, tanto quanto a cantora singular – e de voz única – que o batizou!

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]