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Em política, tanto quanto na arte, convém olhar para o outro a fim de falar de si mesmo, e/ou vice-versa

Em política, tanto quanto na arte, convém olhar para o outro a fim de falar de si mesmo, e/ou vice-versa

Em 2019, os dois filmes brasileiros mais aguardados já foram exibidos internacionalmente: “Marighella”, de Wagner Moura, e “Bacurau”, de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Tanto num caso como no outro, as acolhidas estrangeiras foram positivas: o primeiro destes filmes provocou intenso debate no Festival de Berlim, enquanto o segundo recebeu uma importantíssima láurea no Festival de Cannes. Entretanto, a despeito de tais preâmbulos exultantes, ambos os filmes podem enfrentar dificuldades para serem comercialmente exibidos em seu país de origem, em razão de ambos incomodarem diretamente os brios torpes da corja política atualmente no poder.

Não obstante estar vinculado a um gênero de franco interesse popular, a cinebiografia, “Marighella” causou celeuma por metonimizar a extrema polarização política atualmente em voga no Brasil: a esquerda entusiasmou-se pelo retrato do guerrilheiro negro que pode exortar a população contra os desmandos dos bolsonaristas, enquanto a direita tachou o personagem-título de terrorista e apressou-se em conclamar um boicote quando da estréia oficial do filme, que, pasmem, só ocorrerá no 20 de novembro, escolhido justamente por ser o dia celebrativo da consciência negra no país. Temeu-se, inclusive, que o filme sequer estreasse, por questões relacionadas à precariedade distributiva do cinema nacional, infelizmente uma chaga longeva, que acentua a condição subdesenvolvida do excelente cinema brasileiro.

“Bacurau”, por sua vez, tem previsão de estréia para o dia 29 de agosto de 2019, mas suas sessões perigam ser atravessadas por efeitos diretos dos conturbados eventos políticos do Brasil, em razão de sua temática ser diretamente relacionada à necessidade de resistência de caráter esquerdista. O que não é novidade na filmografia de um dos diretores, vítima de perseguição indireta por conta dos protestos que realizou no mesmo festival de Cannes ao lançar o petardo que atende pelo nome de “Aquarius” (2016). Mas, até que estes filmes estréiem, de fato, muita coisa pode – e vai – acontecer no palco noticioso brasileiro. O recente vazamento de indícios de parcialidade criminal nas práticas públicas do atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, que o diga: aguardemos os próximos capítulos, por enquanto.

Tomando-se como ponto de partida reflexivo estes dados contemporâneos, ainda em processamento factual, podemos aplicar a relação de alteridade e subjetividade contida no título deste artigo ao derradeiro exemplar da trilogia sobre a cidade de Alexandria levada a cabo pelo cineasta egípcio Youssef Chahine (1926-2008). Este filme, “Alexandria, Again and Forever” (1989) – nunca lançado comercialmente no Brasil, por isso, o título anglofílico – continua a saga autobiográfica iniciada com “Alexandria, Por Quê?” (1978), pelo qual seu diretor recebeu o Urso de Prata no festival de Berlim.

Protagonizado pelo próprio diretor, “Alexandria, Again and Forever” é centrado na obsessão de seu alter-ego Yehia Eskandarany pelo jovem ator Amr (Amr Abdel-Gelil), com quem desenvolve uma relação de extremo platonismo homossexual. Ao mesmo tempo em que se digladia internamente com os problemas de uma adaptação da tragédia shakespeariana sobre o príncipe Hamlet – cujo monólogo sobre a dúvida entre “ser ou não ser?” aparece musicada em árabe logo no início – o diretor Yehia é conclamado a participar de uma greve de fome levada a cabo pelos cineastas egípcios, em razão de problemas com a censura nacional. À medida que ambos os conflitos se acentuam – o romântico, evidentemente interditado; e o político, atravessado por questões sindicais apressadas – o protagonista relembra feitos do passado, e vários filmes do próprio diretor Youssef Chahine aparecem creditados ao seu protagonista, confirmando que aquilo que aparenta ser íntimo, no início, possui também forte envergadura coletiva.

Marcado por inusitados números musicais, que denotam o fascínio ostensivo do diretor pela cultura ocidental, “Alexandria, Again and Forever” acrescentará ainda mais elementos passionais à sua trama eminentemente política, ao fazer com que Yehia, ao ser abandonado por Amr, apaixone-se perdidamente pela jovem Nadia (Youssra), com quem imagina filmar uma lúbrica versão de outra tragédia shakespeareana, esta originalmente alocada no Egito, “Antônio e Cleópatra”. Mas a devoção homoerótica não sublimada por Amr ressurge na idealização paralela de uma cinebiografia romantizada sobre o conqyistador macedônio Alexandre, o Grande (356 a.C. – 323 a.C), não por acaso o fundador da cidade-natal do diretor, Alexandria. Ao término, uma dedicatória explícita “à luta dos artistas egípcios pela democracia”, depois de mais um número musical, encetado em plena votação decorrente da greve de fome anteriormente mencionada. Alguém duvida que as vidas privadas de alguns estetas também são políticas?!

Ovacionado ao longo destas linhas, “Alexandria, Again and Forever” surge como demonstração poderosa de que, por mais que se tente boicotar o impacto de uma obra de arte concomitantemente existencial e reivindicativa, esta é oportunamente validada pela própria História, resgatada em sua importância política indissociável de sua autenticidade confessional. O mesmo ocorrerá com “Marighella”, “Bacurau” e outros filmes que podem sofrer os danosos efeitos engendrados pela diluição do Ministério da Cultura no Brasil. A História há de lhes dá razão, como também o fará à presidenta injustamente vítima de ‘impeachment’ Dilma Rousseff. Testemunhemos participativamente, daqui por diante…

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